Bruckner: Sacred Works (Deutsche Grammophon, 2016)
Dir-se-ia
mais um rebento das sacristias da Alta Áustria, de vida dedicada ao órgão, não
fosse a autoria de uma obra sinfónica que o arrancou pouco a pouco da sombra
das epístolas. Mas também na música sacra se destacou. Aqui está a “Ave Maria”
e a “Missa em Ré menor”, com que começou a dar nas vistas, bem como os mais
radicais “Te Deum” e “Salmo 150”, o tal em que Mahler ouvia a língua dos anjos.
Charpentier:
Pastorale de Noël (Harmonia Mundi, 2016)
Quando
Mignard pintou o retrato de Maria de Lorena, a Duquesa de Guisa, completou-o
com uma cartela em que se vê uma só árvore cercada de cepos, ilustrando Maria
como a última da sua linhagem, facto consumado em 1675. É nesse lutuoso
contexto que surge esta obra de Charpentier, consagrada a Jesus e aos
pastorinhos. Termina numa referência à vida eterna. Pudesse ela vir acompanhada
de música desta.
Pärt: The Deer’s Cry (ECM, 2016)
Parecerá
absurdo sublinhar que este programa de obras sacras corais de Arvo Pärt se assemelha
a um exercício de cantochão quando os membros do Vox Clamantis dão mostras de
levitar a cada compasso, mas talvez o ponto seja exatamente esse. Inclui a
beata “Os Três Pastorinhos de Fátima” (do Salmo “Dos lábios das crianças e dos
recém-nascidos suscitaste o louvor”), composta após visita à Cova da Iria.
Schubert: Lieder (Harmonia Mundi, 2016)
Mayrhofer,
Schiller, Goethe e Müller foram as estrelas guia neste estranho firmamento, a
projeção do consolo e do anseio, da solidão e da saudade, do luto e do desejo.
Não se imagina figura mais apta a dar-lhes voz que Schubert tal como, hoje, não
se vislumbra maior intérprete seu que Goerne. Editados entre 2008 e 2014
(destacando-se Leonskaja e Eschenbach ao piano), estes discos são testamentais.
“Dixit Dominus: Vivaldi, Mozart, Handel” (Alia Vox, 2016)
Confuso,
cruel e bélico, o texto é redundante logo a abrir, com aquele “Dixit dominus
Domino meo” (do Salmo “O Senhor disse ao meu Senhor”). Daí, tamanho esmero
retórico: Vivaldi compondo em Ré maior (majestático, pomposo, magnificente),
Mozart em Dó maior (puro, inocente, devoto) e Handel em Si bemol maior (claro,
brilhante, frontal). Neste, Savall atinge a transcendência.
Alison
Balsom “Jubilo: Bach, Corelli, Torelli, Fasch” (Warner, 2016)
Cá
está o famoso “Concerto Grosso”, de Corelli, dito Concerto de Natal, em nova
orquestração, com Balsom, na trompete barroca, capaz de modelar cada nota até
ao ponto de sugerir um solitário raio de sol a romper o céu por entre as
nuvens. Já nos corais de Bach, acompanhada no órgão por Stephen Cleobury, recorre
à trompete de válvulas e é como se mil velas viessem alumiar a escuridão que
nos cerca.
“The Art of Nikolaus Harnoncourt” (Warner, 2016)
Ainda
surpreendem, “Sonho de Uma Noite de Verão”, de Mendelssohn, e a sinfonia “Do
Novo Mundo”, de Dvorak, para não falar já do impacto do seu Beethoven de início
dos anos 90 (aqui, na segunda e quinta sinfonias). Mas é pelo que fez em obras
de Monteverdi (logo com “L’Orfeo”, em 1968), Biber, Vivaldi ou Bach que Harnoncourt
se afirmou como um visionário. Faleceu em março. A sua arte sobrevive-lhe.
Gidon
Kremer “Complete Concerto Recordings” (Deutsche
Grammophon, 2016)
Começou
do lado de lá da cortina de ferro, até que, em 1979, se liberta do lastro
soviético e surge na DG. Esta integral de obras concertantes tem pontos altos
em Mozart (com Harnoncourt), Gubaidulina (com Dutoit), Beethoven (com Marriner)
ou Shostakovich (com a Kremerata Baltica). Fará 70 anos em fevereiro mas a DG quis
desejar-lhe primeiro feliz natal.
Alfred Brendel “Complete Philips Recordings” (Decca, 2016)
Num
ou noutro mercado mais competitivo saiu a tempo de ir parar ao sapatinho no
Natal de 2015, mas no resto do mundo só deu à costa a 6 de janeiro. Como o
bolo-rei, terá a sua fava e o seu brinde, embora, aqui, quase nada se deva à
sorte e tudo se deva ao bom senso, como quando Brendel, em 2013, na “Gramophone”,
afirmou que a produção de Beethoven para piano concedia tanto espaço ao gracejo
e à graciosidade quanto à gravidade e que, na vida, era compatível com a
comédia e com a tragédia, com a sagacidade e a sabedoria. Ouça-se a
“Hammerklavier” (quer a de 1983, quer a de 1995), as “Variações Diabelli” (a de
2001) e o Op. 111 (1995) e logo se terá perfeita noção daquilo que dizia. E
escutem-se a versão para piano de “Quadros de uma Exposição”, de Mussorgsky
(1985), a “Konzertstück”, de von Weber (LSO/Abbado, 1979), o “Concerto Nº 1”,
de Brahms (BP/Abbado, 1986), muito do seu Liszt e das sonatas de Haydn de
meados de 80, as “Peças de Fantasia” (1982) e a “Kreisleriana” (1980), de
Schumann, as “Improvisações”, a “Fantasia do Viandante” e o ciclo de sonatas de
Schubert, em 1987 e 1988, e os concertos de Mozart que gravou com Mackerras já
neste século, que de súbito vem à mente uma frase sua: “Há [quem aponte] forma
e estrutura como o alfa e o ómega da música. Para mim, assentam antes no
dualismo entre forma e psicologia, estrutura e caráter, intelecto e
sentimento.” Testemunhem-no.
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