Na sua biografia de Mozart, a propósito dos concertos para
piano estreados por assinatura, em Viena, entre 1782 e 1786, falava Maynard
Solomon da afinidade do compositor e intérprete com o seu público, ao qual era assim
concedida “a oportunidade de testemunhar a transformação e o aperfeiçoamento de
um género musical maior”. Se não é desta que se apaga em definitivo de uma
gravação ao vivo na sala a bactéria da tosse convulsa e aquela espécie de
murmulho inconfundível que só 2000 pessoas sentadas muito quietas em conjunto conseguem
produzir, a verdade é que, com a devida distância, não se vislumbra outra
reação no auditório do Severance Hall, em Cleveland, ao longo do ciclo de
Mitsuko Uchida que esta nova edição vem dar por terminado. Cá está Mozart no
seu estado natural, em partes iguais imoderado e comedido, de um momento ao
outro tão submisso ao mais pormenorizado plano de trabalho quão dado ao
improviso, capaz de exprimir o todo pela parte e a parte pelo todo por
intermédio de estruturas ocasionalmente tão complexas que honrar-lhes o fluxo
melódico está ao nível do milagre que terá levado Moisés a fazer brotar água de
uma rocha.
Um Mozart que se preparava, também, para estender o tapete ao bel canto, facto que a pianista mantém
presente e a que em absoluto se entrega, de certa forma contrariando a
tendência de o dirigir absortamente, como que sob o efeito de um feitiço. Torna-o
evidente, desta feita, logo aos primeiros compassos do “Concerto para Piano nº
17”, em Sol maior, K. 453, ao tratar a meia dúzia de temas iniciais como árias
e como as coisas mais extraordinárias que um ilusionista pode retirar da
cartola. Aliás, na fase de exposição do Allegro
leva um motivo romântico ao ponto de rebuçado, por exemplo, e naquele momento da
recapitulação em que o solista, com um trilo, se eclipsa, abrindo caminho à
secção orquestral que conduzirá à cadenza,
traz à memória uma noiva a lançar ao ar o buquê de casamento. Aí, temos a
Uchida que ilustra como poucos (como Haebler, Haskil, Brendel ou João Pires) a graça,
a clareza e o charme que esta música articula tão bem. Da mesma maneira, há
instantes no “Concerto para Piano nº 25”, em Dó maior, K. 503, que não traem
aquilo que Mozart disse um dia: que equilibrava o muito fácil com o muito
difícil. Ouça-se este Allegro maestoso
e ter-se-á a sinopse de uma ópera, com tudo no sítio certo e nas proporções
corretas. Uchida toca Mozart como Marie Kondo arruma a casa, com atenção ao
detalhe mas sem contemplar o supérfluo.
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