Estávamos
sentados no chão, lado a lado, de costas apoiadas numa coluna de aspecto ceráceo.
Assistíamos à insólita atuação de um trio de berberes que incluía o
manuseamento de carabinas e Wang Li estava pasmado. “Um dos membros do grupo
também toca berimbau”, comentei, depois, escusadamente, mais para ver se Li
voltava à terra. “É incrível”, dizia ele. Perguntou-me se tinha visto o seu
concerto e, quando lhe disse que sim, repetiu um desabafo que tinha tido em
palco: “Ouço esta música e sinto que já vivi em Marrocos. E que esta gente já teve
existência na China.” Desviou o olhar para cima e perdeu-se no rendilhado em
madeira entalhada das abóbodas do Dar Adiyel até se pôr a contemplar os astros.
Passava
das onze da noite e o público ia-se aos poucos levantando, permitindo que admirássemos
os tapetes espalhados pelo pátio do palácio. Meio a brincar, expliquei-lhe que,
durante a sua apresentação, e reagindo às permanentes referências que fazia ao
vento, parecia que os espectadores iam planando num tapete voador. E que, a
mim, quiçá a despropósito, me tinha vindo à memória uma canção que ouvia em
pequeno e que dizia: “Costa Brava, Saara,
todo o planeta/ Luzes, cometas, mil estrelas do céu/ Pontos de luz vibrando na
noite preta/ Tudo quanto é bonito, o tapete e eu.” Ele sorriu, ainda que nunca
tivesse ouvido a voz de Gal, e contou-me que gostava de levar o berimbau para
as montanhas e de se pôr à escuta: “Não sei se são os meus antepassados que falam,
se as minhas vidas passadas ou apenas o vento. Só sei que ao tocar procuro esse
som, que é para as pessoas entenderem que, num concerto meu, pode ser que seja
o vento a interpretar-me a mim e não o contrário. E espero que nesse instante estejam
comigo nas montanhas – elas, eu e a brisa.” Confúcio não teria dito melhor,
pensei, enquanto seguíamos em direções opostas pela almedina. A clareza do
discurso de Li contrastava com o dédalo arquitetónico da cidade – mais um entre
os muitos paradoxos da edição de 2014 do Festival de Músicas Sagradas de Fez. De
certa forma, são tudo coisas que agora se transferem para um “Overtones” em que
tem a seu lado Wu Wei, o virtuoso do sheng.
Começam com ‘O Canto das Estrelas’. Depois, é como se viessem contar a génese
de um mundo que até podia ser o nosso, caso fizéssemos por o merecer.
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