Mais do
que glamour, quando Nina Kotova abandonou
as passerelles levou para os palcos
do Wigmore Hall, Carnegie Hall, Concertgebouw ou Town Hall aquela máscara de impassibilidade
com que a haviam disfarçado em desfiles de moda. Um artigo de 2000 no “The Telegraph”,
por exemplo, concluía que, para “comunicar musicalmente”, ela teria de perder a
“pele de manequim”. Isto, porque se lhe apontava uma certa relutância em
dirigir para o exterior a sua atenção e as suas emoções. “Até em termos físicos
se contém”, escrevia o repórter. Era um período em que, como veio mais tarde a revelar,
não se podia “abrir com ninguém, nem tampouco mostrar o que [lhe] ia na alma
russa”. Foi penalizante, tanta coibição. Criticando um concerto seu, uma colaboradora
do “The Independent” socorria-se do livro de Eclesiastes para determinar que,
nela, “tudo é vaidade”: “[Kotova tocou] De olhos postos na pauta, lendo mais do
que interpretando, sem rasgos de imaginação, tecnicamente exata, artisticamente
morta.”
Vinte anos depois, não se pode afirmar que traga ao de cima o mais
moralista em todos quanto consigo se cruzam. Quiçá porque, com o passar do
tempo, lendo entrevistas em que confessava ter crescido “fechada entre quatro
paredes, ensaiando, estudando no conservatório e tocando em recitais”, se
percebia que, na transição do palco para as passerelles,
e vice-versa, tinha trocado uma prisão por outra. Do mesmo modo, quando declarava
ao “New York Post” que “voltar à música é como regressar a um lar”, entendia-se
que falava menos de residências do que de sentimentos. E quando jurava à
professora e pianista Frances Wilson que seguia a máxima com que Tolstói situava
a ação num presente absoluto, parecia querer dizer o inverso: que o passado
vive sempre connosco, que se pode mudar de casa sem mudar de condição, que há
caminhos que nunca têm fim. É no que se pensa ao escutar-se este par de sonatas
para violoncelo e piano de dois conterrâneos seus, cada qual, à sua maneira, a
tentar fugir ao cárcere: Rachmaninoff, em 1900, das garras da depressão;
Prokofiev, em 1949, dos efeitos da zhdanovshchina. Kotova pode desperdiçar mais uma oportunidade de
se reinventar e manter estampada no rosto alguma inescrutabilidade eslava. Já não
importa. Pela primeira vez em disco, ao ouvi-la, sabe-se de onde vem.
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