Surgem em áreas de fronteira, os sonhos, nos filmes
de Tarkovski. E dir-se-ia que não servem tanto para lhes demarcar as linhas
divisórias quanto para determinar aquilo que as mantém em derrame. É um
dispositivo com tendência para o paradoxo, claro, ao obrigar a uma perceção
mais atenta de tudo o que se desenrola à medida que dos próprios objetos se
esfuma a evidência do real. Isto, não obstante a completa reversibilidade
destes conceitos na obra do realizador. Agora, ao terceiro ensaio, este
Tarkovsky Quartet, constituído por François Couturier (piano), Anja Lechner
(violoncelo), Jean-Marc Larché (saxofone soprano) e Jean-Louis Matinier
(acordeão), aproxima-se mais ainda dessa lógica onírica por intermédio de temas
esboçados e algo espúrios, reduzidos a escombros, escapando à esfera da
perceção comum e evadindo-se de qualquer estrutura, estilhaços extraídos à
estética da música de câmara aqui, à do folclore acolá, sem aderir a nenhuma.
Noutro
contexto, este despiste ao cânone colocaria a nu um conjunto de fraquezas que
são pertença do quarteto, em que tudo é significativo e alusivo. No entanto,
nada compromete o impacto emocional de uma música que dá mostras de possuir uma
dimensão inesgotável e insubstituível ao preferir a linguagem oculta à corrente.
Ouvi-la, traz à memória, aliás, o que ele dizia em “Esculpir o Tempo”: “A força
vital da música materializa-se no limiar do seu total desaparecimento.” Daí, a
importância do conflito nesta formação. Pois, não se tratando de outra coisa
que não de um grupo de quatro solistas, é desse atrito que nasce a centelha que
animava, também, o cinema de Tarkovski: em que a responsabilidade de cada um em
relação ao curso geral da vida humana crescia consoante o valor intrínseco das
ações individuais. Numa das suas últimas entrevistas, Tarkovski disse: “Os
sonhos proféticos aparecem no momento em que adormeço, quando a minha alma se
separa do mundo das planícies e sobe em direção aos cumes das montanhas”. Esta
música acompanha-o.
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