Não
aponta propriamente para aí, o seu título. Mas há momentos magníficos neste
“Float the Edge” que se assemelham aos movimentos de fluxo e refluxo das massas
de água à superfície da terra, com os seus constituintes básicos sob a ação de
campos gravitacionais distintos. São instantes em que se indicam direções muito
diferentes uma da outra, claro, com Angelica Sanchez interessada em melodia,
por exemplo, enquanto, em simultâneo, Michael Formanek se concentra mais em
harmonia ou Tyshawn Sorey no ritmo, sem que se chegue bem a materializar a
estrutura que determina cada peça, nem, por outro lado, se distinga qualquer
fricção entre os seus elementos. A pianista apresenta-o deste modo: “Na
qualidade de trio, muito do que fazemos é levar as coisas ao limite, tomando o
risco de mergulhar no vazio. Quando temos êxito parece que estamos a flutuar –
é belíssimo.”
Daí, quiçá, a evocação de certos arquétipos: ‘Shapishico’ é uma
figura metamórfica do folclore peruano capaz de atrair transeuntes para o
coração da selva amazónica; ‘Substance Of We Feeling’ refere-se ao alimento
espiritual do Império de Canopus, criado por Doris Lessing no alegórico “Shikasta”;
‘Hypnagogia’ chama a si o fenómeno do sonho lúcido, ‘What the Birds Tell Me’ o
canto dos pássaros, etc. Isto é, Sanchez vai de encontro às conclusões de
alguns estudos em neurociência: para o que agora interessa, que a consciência é
muito mais passiva do que aquilo que julgamos; que os seus conteúdos ativos
vivem sobretudo de estímulos exteriores que iludem o nosso controlo. O que
apenas reforça o profundo quadro ético em que opera, no qual incerteza, involuntariedade
e imediatez contribuem tanto quanto o seu inverso para o resultado final: é “estar
no mundo, mas não ser dele”, como se diz no sufismo, que Lessing praticava,
embora aqui se tenha o livre-arbítrio como fundamento. De facto, o melhor jazz nunca
foi de outra maneira.
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