Incapaz de beber café sem se pôr a olhar para as
borras no fundo da chávena, Robert Schumann via sinais em tudo. E na poesia,
desde muito cedo, encontrou uma espécie de intimação do destino, conquanto,
hoje, em retrospetiva, pareça algo imprevidente na forma em como resistiu ao
impulso de compor para voz. “Oh, Clara, que felicidade em escrever música para
ser cantada; não a sentia há tanto”, confessava ele à mulher que amava numa
carta de fevereiro de 1840, o prodigioso Liederjahr
– o ano das canções. Antecipava já o som dos sinos, pois, como se sabe, após
meses de extenuante batalha legal com o pai de Clara, Friedrich Wieck, o casal
viria a casar-se a 12 de setembro na véspera do 21º aniversário da virtuosa
pianista; isto é, de maneira muito simbólica, quando estava a horas de atingir
a maioridade perante a lei.
Do período, primeiro acompanhado por Vladimir
Ashkenazy e depois por Eric Schneider, Matthias Goerne gravou já os ciclos
“Liederkreis”, Op. 24 (poemas de Heinrich Heine), “Dichterliebe”, Op. 48 (idem), “12 Gedichte”, Op. 35 (Justinus
Kerner) e “Liederkreis”, Op. 39 (Joseph Eichendorff), que agora invoca através
de um trio de canções de “Myrthen”, Op 25 (Heine, novamente), e de outra
proveniente de “Gedichte aus Liebesfrühling”, Op. 37 (Friedrich Rückert): ‘A
Flor de Lótus’, em que a passagem do dia para a noite que acompanha o verso “A
lua é a sua amante” raramente alcançou a presente delicadeza, ‘Tu És Como Uma
Flor’, em que o barítono se aproxima em bicos de pés dos ritardandos, e ‘A Lágrima Solitária’ e ‘O Céu Verteu Uma Lágrima’, dois
casos de pura alquimia. Situados a meio de um alinhamento superiormente consagrado
às melancólicas canções dos tardios Op. 89 (Wilfried von der Neun) e Op. 90
(Nikolaus Lenau), com desvios numa glacial ‘Canção Noturna’, Op. 96/1 (Goethe),
e numa enganosa ‘Minha Bela Estrela!’, Op. 101/4 (Rückert), é como se, em
termos dramáticos, Goerne transferisse Schumann da aurora para aquele
crepúsculo do qual não mais saiu. Talvez por isso cante com a fidelidade magoada
de um anjo que baixou a guarda e perdeu quem deveria proteger.
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