Não é a primeira vez que o Códice Trujillo chega aos discos – já o Capilla
de Indias, de Tiziana Palmiero, o gravou na íntegra (na K617, em 2005) e já o
próprio Jordi Savall por três vezes o abordou, em “Villancicos y Danzas
Criollas” (2003), “El Nuevo Mundo” (2010) e “Les routes de l’esclavage” (2016).
Mas a verdade é que o singularíssimo compêndio organizado por Baltasar Jaime
Martínez Compañón y Bujanda enquanto Bispo de Trujillo, por volta de 1780,
nunca soou tão pouco palimpséstico como agora – e Savall não será o único a problematizá-lo
no contexto das reações europeias à questão da imigração, lembrando, em
entrevista recente, como os espanhóis “escravizaram milhões em benefício
próprio”. Aliás, no códice, a certa altura, surge um esclarecedor mas não menos
surpreendente ‘Tonada El Congo’ (que diz assim: “A la mar me llevan/ Sin tener
razón/ Dejando a mi madre/ De mi corazón”), através do qual
Martínez Compañón parecia sugerir qualquer coisa acerca da futilidade da
dominação colonial quando confrontada com a importância dos laços de sangue,
com o sentimento de pertença, com o amor.
Não que Compañón não fosse fluente em
politiquês: conforme descrito numa carta sua a Carlos III, o prelado tinha como
objetivo “aumentar y hacer más útil su
población (…) y que se fomenten así
mismo aquellos ramos de industria que siendo útiles a su provincia no traigan
perjuicio a las demás del Reyno”. Mas analisando o material que reuniu neste
volume, em que soube impor uma espécie de superestrutura narrativa sobre a
condição humana, deu igualmente mostras de reordenar as suas prioridades básicas
– e é difícil crer que não tenha programado o seu trabalho de maneira a eliciar
à risca conclusões deste género. Pois mesmo que não promova um estudo exaustivo
do comportamento social, reserva espaço para o pesar, o ciúme, a paixão, a culpa,
a piedade e a crueldade, e principalmente, por meio da canção, documenta tudo o
que podia haver de comum entre as forças mais contrastantes do vice-reinado do
Peru. Longe da prática do barroco andino (que, pela “ânsia de deslumbrar os
aborígenes, se mostrava mais desvairada ainda”, de acordo com o que escreveu
Ferreira de Castro), este conjunto de tonadas,
cachuas, bayles e lanchas não criou uma nova expressão física para velhas verdades espirituais –
ao invés, capturou arte acabada de gerar por índios, mestiços, mulatos e africanos,
gente que conseguiu deixar por testamento o que jamais chegou a herdar. Esse é
um dos milagres do Novo Mundo.
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