Quiçá
de modo apócrifo, diz-se que o décimo-segundo dos “Estudos”, Op. 10, de
Frédéric Chopin, de então em diante marcialmente alcunhado como Revolucionário,
terá nascido em consequência do chamado Levante de Novembro, que culminou no
assalto e subsequente queda de Varsóvia às mãos das tropas imperiais russas.
Aqui, Daniele Pollini toca-o como se tivesse em mente o hino patriótico que uma
desfalcada falange de cadetes polaca canta ao marchar contra os canhões
inimigos e em direção à morte. Toca-o, quase, com indignação, contrariado –
como normalmente se toca tudo aquilo que não se controla e que de certa forma
reduz à solidão quem o pretende usar como pretexto para medir as próprias
forças. Perto do fim, com a mão esquerda, adensa incessantemente arpejos – negros,
enevoados – como se o fumo saído da boca dos obuses se confundisse já com o
vapor que se desprende dos corpos em combustão, e é nesse instante que obriga a
mão direita a cortar a caruja, subindo à porta do céu, antes de terminar a peça
naquele incongruente acorde de Dó maior que, agora, soa mais conclusivo de que
o costume. Trata-se de um momento positivamente fototrópico, com o pianista
irremediavelmente atraído para a luz, e que, a seguir, de maneira algo literal,
ganha eco na execução de “Para a Chama”, de Alexander Scriabin.
Não é Daniele
que armazena a gordura de tanta metáfora no tecido adiposo das peças – para
isso, basta ler o que os compositores escreveram sobre as suas obras. Aliás, o
seu pianismo é suficientemente rigoroso – sem prejuízo de um aspecto agaiatado,
que se lhe diria inato – para lembrar que, na música, quando se articula com
coerência a ideia de progresso é porque se procura ocultar descontinuidades
mais profundas. No caso, as que tiveram como arautos Chopin, Scriabin e ainda
Karlheinz Stockhausen, representado pela “Peça para Piano IX”, ciente que do
nascimento do primeiro à morte do último vai cerca de 200 anos. Dir-se-ia, até,
que ao apertá-los para caberem num mesmo CD Daniele procede no intuito de
sublinhar o muito que os uniu: acima de tudo, o desejo e a ambição de absolutamente
transformar o som do piano. Sabe-se que Daniele cresceu na soleira do panteão e
que toca desde pequeno. Na década de 80, quando o seu pai, Maurizio (cuja
precisão parece ter herdado), abria as portas da casa a jornalistas, liam-se
amiúde referências a si. Estreou-se como solista há coisa de 20 anos, mas decidiu
esperar pelo seu quadragésimo aniversário para lançar um disco. Em boa hora o
fez.
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