Numa clara manhã de outono, em Munique, conversava
com o teórico Kodwo Eshun no átrio da Haus der Kunst, os carnudos mármores à
nossa volta chamando discretamente a atenção para a complicada história do
colossal edifício. “Sabia que o museu começou por se chamar ‘Casa da Arte
Germânica’?”, pergunta ele, creio que de modo retórico. “É o tipo de detalhe
que agradaria, aqui, ao Cherry”, conclui. De facto, levando-nos automaticamente
a genufletir, junto a nós encontrava-se uma enorme fotografia de Don Cherry
alusiva à exposição que nesse dia abria ao público: “ECM – Eine kulturelle
Archäologie”, que esteve patente de 23 de novembro de 2012 a 10 de fevereiro de
2013. Comento que a imagem (em que Cherry está de olhos fechados e com o
indicador direito colado aos lábios enquanto com a mão esquerda segura a
corneta à altura do peito) me lembra um tema de “El Corazón”: ‘Voice of the
Silence’. “Lindo. Não é um nome que se associe só à ECM, mas escolhê-lo para
cara desta mostra foi perfeito”, diz Eshun.
Realmente, sem por um segundo lhe
trair a velha ambição de se vir a tornar uma espécie de folclore universal, não
há quem personifique tão bem a perambulação pelas periferias do jazz a que a editora
alemã se dedicou quanto Cherry – de modo mais flagrante na produção dos Codona
(com Collin Walcott e Naná Vasconcelos), sim, mas nunca de modo tão pouco
ritualizado e ao mesmo tempo tão pouco profano quanto neste “El Corazón”, recentemente
reeditado. Gravado em 1982 com Ed Blackwell, o disco aprofunda num quadro de
maior subtileza e com outro conhecimento de causa o que a dupla havia ensaiado
a 22 de agosto de 1969 nas sessões de “Mu”, fez agora precisamente 50 anos: mantém-se
o objetivo de sondar os cantos mais recônditos da improvisação, claro, mas não
se descura o fundamento efetivo da sua prática num conjunto de disciplinas e
métodos seculares que obrigam a descolonizar os sentidos. Saindo à rua, Eshun
quis saber ao certo o que mais apreciava eu em “El Corazón”: citando Pascal,
respondi-lhe que o coração tem razões que a própria razão desconhece. “Ah! É
porque o põe em contacto com o que de mais humano possui. Quando o mundo for ao
ar vai ter de se agarrar a coisas dessas!”, exclama, despedindo-se, o negrume do
Terceiro Reich escondido na sombra das árvores à nossa frente.
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