Em março de 2009, em conversa, e a propósito da
estreia em disco de Staff Benda Bilili, o produtor Renaud Barret recordava o
momento em que pela primeira vez tropeçou na trôpega trupe: “Já [me] tinham
falado de uma banda completamente louca de paralíticos e deficientes motores
que tocava uma espécie de blues diferente
e que normalmente dormia pelas ruas. Até que numa noite no bairro La Gombe lá
estavam eles a pedir esmola junto a um restaurante caro, poiso habitual de
expatriados brancos em Kinshasa. Comecei a acompanhá-los e a conhecer as suas
famílias e os guetos onde viviam – foi arrasador. Mas havia música por todo o
lado: reggae, hip hop, funk, rumba, estilos que misturavam com canções tradicionais
e que tocavam em instrumentos construídos a partir disto e daquilo.” Dez anos
depois, a comprovar que a necessidade aguça o engenho, é precisamente daí que
vêm estes Kokoko!, prontos a bater à porta de todos quanto Nietzsche descreveu
no célebre tratado “Culpa, Má Consciência e Afins” – aliás, na língua franca
congolesa, o lingala, com a mesma origem onomatopaica, kokoko equivale ao nosso truz-truz – através de um engenhoso bric-à-brac em que se distinguem cabos
de vassoura, latas de atum e de leite em pó, garrafas de plástico, embalagens
de detergente, torradeiras, máquinas de escrever e baldes de tinta
reprocessados. Como dizia o outro, no Congo plus
ça change… Afinal, trata-se de uma terra sangrenta – a mesma que
observadores internacionais juram estar a ser palco do mais cruento conflito
armado no mundo desde a Segunda Guerra Mundial. Na sua capital, aliás, onde se
diria que a noção de apocalipse faz parte integrante do quotidiano, esteve
recentemente em voga a dança la salle des
morts, em que bailarinos se mexem como os zombies de “Walking Dead”, reencenando nas ruas aquela antiga
ligação entre movimento e morte que Michael Peters coreografou para o teledisco
de ‘Thriller’ – como se tamanho ato de libertação não se pudesse jamais
confundir com a vida, reciclando-se o corpo, se preciso.
Barret completou há
pouco “System K”, um documentário sobre os desapossados, desabonados e desalinhados
criadores da cidade que em nome da arte andam à deriva por depósitos numa demanda
por materiais descartados – entre eles encontram-se os Kokoko!, gente que vê no
gesto uma metáfora para o esbulho a que o seu país é sujeito. Foi Barret que os
apresentou ao produtor francês Débruit (Xavier Thomas), que por sua vez foi responsável
pela principal consequência de “Fongola”: tornar-se no mais visceral e surrealmente
bem-sucedido encontro entre Europa e Congo desde que Hector Zazou, Bony Bikaye,
Claude Micheli e Guillaume Loizillon gravaram “Noir et Blanc”. Em 2009, quando
lhe perguntei por que razão vivia em Kinshasa, Barret afirmou não conseguir
livrar-se da ambígua sensação que aí o cercava: que era “a beleza no caos ou o
caos na beleza” das suas artérias, nem ele sabia bem. Agora, basta ouvir este
incoercível disco para perceber perfeitamente o que queria dizer.
Sem comentários:
Enviar um comentário