O que ainda há pouco fez o violinista Gidon Kremer com os
“24 Prelúdios para Violoncelo”, de Mieczyslaw
Weinberg, na Accentus, ou, também recentemente, a violetista Kim Kashkashian
com as “Suítes para Violoncelo”, de Bach, na ECM, faz agora Desjardins aos
pioneiríssimos “Ricercari” (1688), de Domenico Gabrielli: transcreve-os. Veio-lhe
a ideia, conta, enquanto viajava pela Sicília, fazendo casar o que ouvia com
aquilo que a sua vista alcançava. Mas, como não poderia deixar de ser, até pelo
solipsismo inerente à prática, enquanto solista Desjardins interessa-se mais
por paisagens espirituais – daí, então, o convite a Ivan Fedele para ligar o
condensador de fluxo da contemporaneidade ao barroco, “explorar os gestos e a
escrita de Gabrielli e encadear ricercari
[do italiano ricercare, i.e.,
procurar] com ritrovari [de ritrovare, i.e., encontrar] recorrendo
às sensações de uma viagem interior”, explica. Podia ter colocado a ênfase de
outro modo – afinal, pelo que se ouve aqui, Fedele partiu da maturidade
experimental de Gabrielli; ou seja, na metodologia desta sua aproximação ao seicento reconhece-se a preeminência do
empirismo, e, ao contrário de Doc, em “Regresso ao Futuro”, com ou sem bata
branca, Fedele não receia o paradoxo temporal.
Aliás, não podia ter encomendado
melhor matéria-prima: pois, a verdade é que Gabriellli colocou em confronto a
informalidade dos seus “Ricercari” – onde começou a literatura a solo do
violoncelo – com os dogmas da sua época. Não será por acaso que o “Primo
Ricercar” se inicia com uma pausa, dando a entender que investe em terra desconhecida
antes de ceder ao impulso da imediatez, o perfume da improvisação a colar-se ao
seu motivo melódico, a etiqueta da escrita contrapontista ignorada, a liga
metálica que cobria as cordas (uma invenção recente) em brasa. Na violeta de
Desjardins, como é óbvio, tudo fica ainda mais leve e ambivalente,
fragmentário, etéreo e incoerente – e ao jeito do que fez Scodanibbio com Bach,
Holliger com Machaut ou Tüür com Gesualdo, também Fedele aponta um espelho
estilhaçado ao passado, com certeza por saber que fica assim muito mais perto
de retratar o presente.
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