Clifford Brown raramente repetia
repertório – não teve sequer tempo para isso. Quando o fazia – com ‘Cherokee’
ou ‘Lover Man’ ou ‘You Go To My Head’ – parecia uma criança a reorganizar
blocos de construção, paciente e aplicado, terno e traiçoeiro, infinitamente
capaz de sugerir novos padrões a partir da mesma meia-dúzia de objetos,
ilimitado quer por material, quer por técnica. Quem o ouvia, tivesse-lhe ou não
senioridade, sentia-se instantaneamente de uma geração anterior. Ficou com a
entrada enciclopédica delimitada em 1973 quando a Columbia lançou “The
Beginning and the End”, a compilação que juntava a sua primeira gravação (em 21
de março de 1952, ao serviço duma banda de r&b)
à última (em 25 de junho de 1956, numa loja de instrumentos musicais de
Filadélfia, precisamente na véspera de falecer num acidente de viação). E já na
altura, nas notas de apresentação do LP, Bruce Lundvall, vice-presidente da
editora, escrevia: “Se a sua vida não tivesse terminado tão tragicamente, aos
25 anos, naquela autoestrada do Pensilvânia, o Clifford ter-se-ia tornado o
maior trompetista da História do jazz. Aliás, para mim, ele já tinha esse
estatuto.” Desde então, a sua discografia tem inchado mas os elogios fúnebres
não variam muito. Analistas institucionais louvam-no como uma promessa eternamente
adiada, como Richard Cook, em “Blue Note Records: The Biography”. Teóricos mais
ferinos, como Kirk Silsbee, no livreto da reedição em CD de “Clifford Brown and
Max Roach”, preferem enumerar os beneficiados pelo seu infortúnio, com Miles
Davis, normalmente, à cabeça.
O exercício é fútil, ao jeito de
quem descreva trocas de galhardetes entre gangues rivais, mas, por exemplo, se
em Miles a ternura era com frequência uma ilusão, lembrando a ação de um
predador a brincar com uma presa, já Brown foi incapaz de simular sentimentos.
Além, claro, de ter sido um prodígio espirométrico e de ter dominado o processo
da sua arte como poucos (é impossível não encontrar algo de si naqueles que
ocuparam a cadeira que deixou vazia nos Jazz Messengers: de Kenny Dorham e
Donald Byrd a Lee Morgan, de Freddie Hubbard e Woody Shaw a Wynton Marsalis). Mas
se há especulação que valha a pena fazer, e que a audição desta integral na
Blue Note sustenta, é a de que tocou como se o tivessem avisado do tempo que
lhe restava. Estão aqui os seus registos de 1953 e 1954 que colecionadores
conhecerão por títulos subsequentes: de “The Eminent Jay Jay
Johnson, Vol. 1” e “Memorial Album” – que combinou postumamente “New Faces,
New Sounds”, de autoria repartida com Lou Donaldson, e “New Star on the
Horizon”, em nome próprio – até aos dois volumes de “Art
Blakey: A Night at Birdland”. Cada nota sua é tão essencial quanto qualquer
uma das palavras com que se relata o começo do mundo. Talvez por isso nunca
seja tarde para recordar Clifford.
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