Tal como havia começado,
nesse 11 de novembro de 66, abruptamente a música cessa. Apanhados de surpresa,
Bob Rothstein e Dave McLaughlin, animadores
da estação que fazia o direto a partir da Universidade de Temple, em
Filadélfia, permanecem em antena enquanto o público abandona a sala. Bob: “Isto
foi diferente de tudo o que já ouvi na vida; nem fazemos ideia dos envolvidos.”
Dave: “Deram-nos a entender que o próprio Coltrane falou de um avivamento espiritual.
Temos uma lista de um quinteto, mas acabámos com quatro percussionistas em
palco e, para além de Coltrane, outros três saxofonistas, dois deles
desconhecidos.” Bob: “Nestes anos que levo a ouvir, ver e apreciar jazz, nunca assisti
a nada tão estranho.” Dave: “Ainda há gente pelas cadeiras… E muitos têm exatamente
o mesmo ar que nós: vazio, inexpressivo.” A transcrição confirma que até em
rádio não há coisa mais eloquente do que o silêncio.
Eis os factos:
Coltrane tocou acompanhado por Alice, sua mulher, ao piano, e por Pharoah
Sanders em saxofone tenor, Sonny Johnson ao contrabaixo (em substituição de
Jimmy Garrison) e Rashied Ali na bateria; juntaram-se-lhe os ritmistas Umar Ali,
Robert Kenyatta, Charles Brown e Algie DeWitt e os saxofonistas Steve
Knoblauch e Arnold Joyner; interpretaram-se versões extasiadas de ‘Naima’,
‘Crescent’, ‘Leo’, ‘Offering’ e ‘My Favorite Things’. Mais: ‘Offering’ não tinha
ainda ido a estúdio (seria postumamente publicado em “Expression”, em setembro
de 67) e ‘Leo’ estava conservado numa fita que só veria a luz do dia em 72, com
“Infinity”; os tambores, esses, lembram “The Olatunji Concert”. Por fim: com
uma solenidade totémica, Coltrane garganteia em dois temas. Morreria a 17 de
julho de 67.
Desde “Stellar Regions” que a descoberta de documentos inéditos
de Coltrane provoca alvoroços metafísicos. Aqui, ouvir a sua voz é como
tropeçar num indesmentível sinal de transcendência. E se tivesse visitado os
radialistas na cabine de som não seria de admirar que tivesse agradecido tamanha
perplexidade. Pelo que se conhece das suas leituras, talvez lhe viesse à
memória, até, uma conversa entre Siddhartha e Vasudeva à beira rio, em que se
falava de saber ouvir “sem paixão, sem desejo, sem julgamentos, sem opiniões”.
Por
estas palavras também teve particular apreço Jimmy Giuffre. Aliás, o seu “River
Chant”, de 75, é precisamente sobre a possibilidade de se escutar de uma só vez
as dez mil línguas com que se exprime esse rio que Hermann Hesse evocou. Dez
anos antes atravessava um dos piores momentos da sua carreira (ficaria sem
editar de 62 a 72), mas estas bobines (uma de um registo em trio, com Joe
Chambers e Richard Davis, outra de um quarteto com Chambers, Don Friedman e
Barre Phillips) provam que no murmúrio das águas percebeu um segredo: que “o
tempo não existe”; que se pode estar no presente “sem sombra do passado ou do
futuro.” Quando faleceu, a 24 de abril de 2008, não se dava como certo que seu
silêncio tivesse sido mais importante do que o ruído de muitos. Agora, sim.
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