2 de agosto de 2014

Entrevista a Fred Frith






No âmbito da 31ª edição do festival “Jazz em Agosto”, Fred Frith subirá por três vezes ao palco do Anfiteatro ao Ar Livre da Fundação Calouste Gulbenkian. Fá-lo-á em três formações distintas. Paralelamente a isso, sábado que vem, será projetado “Step Across the Border”, um premiadíssimo documentário de tendência ensaística que o tem como assunto principal. Isto no ano em que os seus Henry Cow se reúnem. São razões de sobra para uma conversa.
 

Há em “Step Across the Border” uma cena em que Fred Frith anda às compras num supermercado. O que a torna inesquecível é o que acontece a seguir, já que, chegado a casa, não prepara comida mas sim a guitarra elétrica, polvilhando-a com metade dos conteúdos do saco. O procedimento ilustrará algo daquilo que é enquanto músico, dirá alguma coisa acerca dos seus interesses como cozinheiro e muito revelará sobre o seu método de ensino na universidade de Mills, na Califórnia: “Pergunto aos alunos: ‘Porquê isto? Porquê agora? Que mais?’ O processo é puramente pessoal”, revela, em entrevista por email. Frith, inglês, nascido em 1949, é um dos mais influentes guitarristas dos últimos 50 anos. A sua discografia – a solo ou em variadíssimas formações – é absolutamente antológica e transversal e desafia convenções culturais e idiomáticas. Esteve numa grande banda de rock que não se permitia propriamente tocar rock (Henry Cow). Esteve num superlativo grupo de improvisadores que produzia algo que resistia deliberadamente à improvisação (Naked City). Da cadeira de compositor – em peças para o Ensemble Modern, Irvine Arditti ou para o quarteto Rova – é curioso e caridoso e cruel. Virá a Lisboa atuar num trio com Joëlle Léandre e Hamid Drake, num quarteto com Léandre, Urs Leimgruber e Alvin Curran, e com os Massacre, a banda de múltiplas encarnações que divide com Bill Laswell e Charles Hayward.

Há dias ouvia “Rivers & Tides” [edição da banda-sonora que Fred Frith compôs para um documentário acerca do trabalho do escultor, fotógrafo e land artist britânico Andy Goldsworthy] e perguntava-me se quem vive da improvisação não terá algo de respigador.
Bem, hoje a improvisação cobre uma área de ação tão grande que não é possível fazermos qualquer tipo de generalização. Mas claro que é absolutamente decisiva a relação que estabelecemos com o meio ambiente ou com um espaço concreto em que nos encontremos. Temos de saber colaborar com a situação: com a acústica, a ressonância, o sentimento, o ouvinte.

Na natureza e na arte há de haver sempre quem pense que se obedece a um desígnio qualquer ou, então, que tudo se deve ao caos. Já você, como, aliás, Goldsworthy, parece-se interessar por ambas as perspetivas, não?
Sempre me interessou muito a relação entre a ordem e o caos, aquilo que o famoso concerto de Charles Mingus no Town Hall tão bem ilustra: o fechar de cortinas com a banda ainda a tocar deu origem ao mais sublime caos. Tenho curiosidade por estruturas que permitam a ocorrência de algo indeterminado e gosto de justapô-las a material de organização muito clara. Interessa-me, por exemplo, quando as coisas falham – como a Goldsworthy, quando aquelas horas de trabalho em que ele tenta impor algum tipo de ordem são pura e simplesmente varridas por uma rajada de vento.

É como se a arte passasse a ser secundária, como se fosse apenas outro acaso da vida. “Step Across The Border” [documentário sobre Fred Frith] tem algo disso, dessa mistura entre facto e ficção?
Na altura foi difícil distanciar-me do retrato que o filme propunha. Mas habituei-me a ele e, de certa maneira, até me deu algum prazer abrir mão dessa versão de mim que por ali andava. Não o vejo há algum tempo, mas a sua produção educou-me muito: a filmagem, a captação do som, a montagem. E durante esse processo tive de aprender a abdicar do controlo total sobre o que fazia, quase como se fosse obrigado a ouvir a minha própria música pela primeira vez. Vermo-nos assim, no ecrã, ensina-nos a desapegarmo-nos de algumas coisas.

Penso na retórica que acompanha a improvisação, por exemplo, em que se fala sempre de um ato de libertação quando, por vezes, tem mais a ver com prisões.
Mas de que forma nos deixamos aprisionar? É isso o mais importante. Por opiniões? Pelos nossos hábitos? Se o permitirmos, tudo nos pode prender.

Você também lidou com formas eminentemente canónicas. Compôs quartetos de cordas para Iva Bittová ou Irvine Arditti, tem quartetos para saxofone ou guitarra. O que o atraiu, aí?
Encontro uma suprema satisfação a compor quartetos. Principalmente porque, dada a minha falta de instrução formal, muito desse trabalho me obriga a lidar com os limites daquilo que consigo dominar!

No passado trabalhou com gente como Robert Wyatt ou Mike Oldfield, com autodidatas e instrumentistas profissionais, escreveu para grandes formações e distinguiu-se enquanto solista. Alguma vez sentiu que levava uma vida marcada por paradoxos?
Geralmente tento aproveitar as oportunidades que se me apresentam. Tive imensa sorte no facto de isso me permitir entrar em contacto com um conjunto de parceiros tão variado, mas não é algo que considere particularmente paradoxal. A musicalidade tem raramente a ver com coisas tão formais: são a paixão e a dedicação que lhe dão forma.

Alguém como Brian Eno, por exemplo [Frith colaborou em “Before and After Science” ou “Music for Films”], terá acreditado que você era um estilista absolutamente singular, identificável às primeiras notas. No que habitualmente se designa por ‘sessões de estúdio’, alguma vez receou tornar-se um mero artifício?
Evitei esse tipo de trabalho mais comercial apenas quando senti que me estavam mais a convidar por ser guitarrista do que por ser quem eu era. Mas nunca deixei de ir a estúdio para projetos desses. Ainda recentemente estive a trabalhar com o Aaron Novik, com a banda Matthew Edwards and the Unfortunates ou com os Rusconi e é, muito sinceramente, do mais divertido que pode haver.

Desde os tempos dos Henry Cow e dos Art Bears que toca em conjuntos. Tem de lidar com muitas restrições nesse contexto?
Fazer parte de um coletivo apresenta um conjunto de desafios muito próprios, é certo, mas possui, também, vantagens muito evidentes. Há pouco tempo atrás, a ouvir as gravações ao vivo dos Henry Cow recentemente editadas, impressionou-me o quão livre foi a nossa ação! Fiquei comovido a ouvir esses discos, porque se tornou claro que, mesmo nesse contexto, em condições de trabalho tão atentas ao detalhe, lidávamos muito abertamente com as fórmulas que criávamos.

Sei que em breve se vão reunir, em homenagem a Lindsay Cooper [falecida em 2013].
Sim, todos nós, os que consigo estiveram nos Henry Cow, interpretaremos as canções que escreveu para o grupo. Mas também se ouvirão peças para agrupamentos como News From Babel, Film Group ou Oh Moscow. E teremos sessões improvisadas entre muitos dos seus antigos colegas. Sinto que vai ser um tributo maravilhoso para uma instrumentista e compositora absolutamente extraordinária.

Recordando outros momentos de liberdade e camaradagem, a sua discografia nova-iorquina lê-se como uma agenda em que não sobrava um dia livre! Como foi chegar à cidade e descobrir criadores como Bill Laswell, Kramer, Tom Cora, Arto Lindsay ou John Zorn?
Assim que pela primeira vez visitei Nova Iorque, em 1978, senti que era ali que devia estar. Seguiram-se os cinco anos mais criativos e intensos da minha vida – o período entre 1979 e 1984. O simples facto de ainda ser amigo e de tocar com tantos dos músicos que conheci nessa altura diz tudo sobre essa fase. Mais que tudo, mudou-me a atitude perante a vida: não percas tempo, faz com que cada atuação conte, ouve o mundo à tua volta e continua a pôr-te em causa.

Com os Skeleton Crew, os Massacre, os Material, os Curlew ou os The Golden Palominos, era como se subitamente ruíssem as barreiras entre géneros musicais?
Os historiadores do período julgam que nós tínhamos muita consciência do que estávamos a fazer, mas não me parece que isso seja assim. Acho que estávamos atentos ao espírito daquela época e limitávamo-nos a reagir em conformidade.

Quando toca hoje com os Massacre celebram o passado ou a vossa liberdade atual?
É sempre uma celebração do aqui e agora e, por isso, é sempre diferente. Ainda no ano passado tocávamos em Tóquio e aquilo que o Bill e o Charles faziam juntos só me inspirava veneração!

Por vezes há colaborações suas que parecem desaparecer antes ainda de estarem formadas. Só damos por elas quando sai um disco ao vivo ou quando aparece um vídeo no YouTube. Conforme se perguntaria a um cientista a fazer trabalho de campo, a documentação possui algum valor acrescentado?
Muitas dessas colaborações desenvolvem-se ao largo de longos períodos de tempo. E não tem tanto a ver com pesquisa quanto com aquelas conversas que mantemos durante anos com os nossos amigos mais chegados, em que é sempre possível pegar-lhe no ponto em que a tínhamos deixado mesmo se há muito que não nos falávamos. Acontece documentá-las quando elas possuem algo de especial, mas não se adiciona propriamente um valor: é o seu enquadramento que se altera.

Estas perceções exteriores influenciam-no? Recordo o LP “Cheap at Half the Price” – que se tomaria por um disco dos Residents a fazerem versões dos Talking Heads. Houve, então, quem achasse que veiculava, aí, uma voz algo sintética, menos honesta. Essas reações dissuadiram-no de se tornar um escritor e intérprete de canções?
Nunca me preocupei com isso. Tentei ver se conseguia fazer um disco de canções caseiro, sozinho, recorrendo ao que se passava na minha vida ou ao que lia nos jornais. Fizeram-se algumas construções críticas sobre o disco posteriormente mas garanto-lhe que não têm nada a ver comigo! E sempre cantei. Primeiro num coro, na igreja, e depois num glee club escolar. Cheguei a ser vocalista de uma banda de blues, no início dos anos 60, e escrevia canções para mim nos Henry Cow, pelo menos até aparecer a Dagmar. Mas a minha voz ouve-se em muitos contextos, dos Skeleton Crew aos Cosa Brava.

A estrutura que associamos à canção informa o seu trabalho enquanto improvisador?
Por vezes tento improvisar experimentalmente a partir do formato de uma canção. Pegar, digamos, numa forma tipo ABABABC e tentar improvisar completamente numa parte ao mesmo tempo que pretendo manter exatamente iguais as restantes. Divertimo-nos muito às voltas dessa ideia no quarteto de guitarras.

Falar de canções leva-nos à música popular e, até, ao folclore. Nessa perspetiva vêm-me à memória o espantoso “Un Peu de l'Âme des Bandits” – o seu disco com os Aksak Maboul – ou álbuns como “Gravity” ou Speechless”. O que o levou a gravar música de inspiração folclórica no pós-punk?
Senti que tinha a música folk no sangue desde que peguei numa guitarra. As minhas primeiras atuações foram todas em bares ou clubes recreativos para operários no norte de Inglaterra em que era essa a música que se fazia. Aprendia as canções a partir de discos e estendi posteriormente os meus conhecimentos à música dos Balcãs por intermédio de um colega de escola, o Bojan. Fez sempre parte de mim e especialmente em “Gravity” permiti-me explorá-la no contexto muito peculiar em que me encontrava: suspenso entre a minha vida em Nova Iorque e a minha antiga vida na Europa.

Já nos Naked City cabia o folclore e muito mais, naquelas versões curtas, chocantes, inquisitivas. Aquela densidade e ambiguidade… Era um obstáculo?
Um obstáculo, não: um desafio. Estava a tocar o meu segundo instrumento [baixo elétrico] e tinha de me esforçar imenso para conseguir acompanhar aquele grupo de génios. Mas era muito estimulante.

Pergunto-me se os membros do Ensemble Modern não ficaram algo chocados quando lhes apresentou a música de “Traffic Continues”?
Eles são demasiado realizados e profissionais para se deixarem chocar seja com o que for! Convidaram-me para lhes compor uma peça e eu tentei unir os nossos dois mundos. Quis até introduzir algum perigo na situação em que nos encontrávamos, mas acho que eles nem repararam. Por outro lado, é verdade que nunca mais me ligaram!

Muito do seu trabalho parece depender da comunicação, da comunhão e da comunidade. É aquilo que você toca uma representação dos seus pensamentos e são aqueles com quem você toca uma representação dos seus sentimentos?
Estarei de acordo com a sua premissa, sim. E é óbvio que uma das decisões mais importantes que qualquer músico tem a fazer é a de escolher com muito cuidado as pessoas com quem vai fazer música. Mas os meus pensamentos e os meus sentimentos não são coisas que eu consiga separar, assim, de modo a colocá-los em compartimentos separados. Pelo menos tenho esperança que assim seja.

Sem comentários:

Enviar um comentário