No âmbito da 31ª edição do festival “Jazz em
Agosto”, Fred Frith subirá por três vezes ao palco do Anfiteatro ao Ar Livre da
Fundação Calouste Gulbenkian. Fá-lo-á em três formações distintas. Paralelamente
a isso, sábado que vem, será projetado “Step Across the Border”, um
premiadíssimo documentário de tendência ensaística que o tem como assunto
principal. Isto no ano em que os seus Henry Cow se reúnem. São razões de sobra
para uma conversa.
Há em “Step Across the Border” uma cena em que Fred Frith anda às compras num supermercado. O que a torna inesquecível é o que acontece a seguir, já que, chegado a casa, não prepara comida mas sim a guitarra elétrica, polvilhando-a com metade dos conteúdos do saco. O procedimento ilustrará algo daquilo que é enquanto músico, dirá alguma coisa acerca dos seus interesses como cozinheiro e muito revelará sobre o seu método de ensino na universidade de Mills, na Califórnia: “Pergunto aos alunos: ‘Porquê isto? Porquê agora? Que mais?’ O processo é puramente pessoal”, revela, em entrevista por email. Frith, inglês, nascido em 1949, é um dos mais influentes guitarristas dos últimos 50 anos. A sua discografia – a solo ou em variadíssimas formações – é absolutamente antológica e transversal e desafia convenções culturais e idiomáticas. Esteve numa grande banda de rock que não se permitia propriamente tocar rock (Henry Cow). Esteve num superlativo grupo de improvisadores que produzia algo que resistia deliberadamente à improvisação (Naked City). Da cadeira de compositor – em peças para o Ensemble Modern, Irvine Arditti ou para o quarteto Rova – é curioso e caridoso e cruel. Virá a Lisboa atuar num trio com Joëlle Léandre e Hamid Drake, num quarteto com Léandre, Urs Leimgruber e Alvin Curran, e com os Massacre, a banda de múltiplas encarnações que divide com Bill Laswell e Charles Hayward.
Há dias ouvia “Rivers
& Tides” [edição da banda-sonora que Fred Frith compôs para um documentário
acerca do trabalho do escultor, fotógrafo e land
artist britânico Andy Goldsworthy] e perguntava-me se quem vive da
improvisação não terá algo de respigador.
Bem, hoje a improvisação cobre uma área de ação tão grande
que não é possível fazermos qualquer tipo de generalização. Mas claro que é
absolutamente decisiva a relação que estabelecemos com o meio ambiente ou com um
espaço concreto em que nos encontremos. Temos de saber colaborar com a
situação: com a acústica, a ressonância, o sentimento, o ouvinte.
Na natureza e na arte
há de haver sempre quem pense que se obedece a um desígnio qualquer ou, então,
que tudo se deve ao caos. Já você, como, aliás, Goldsworthy, parece-se
interessar por ambas as perspetivas, não?
Sempre me interessou muito a relação entre a ordem e o caos,
aquilo que o famoso concerto de Charles Mingus no Town Hall tão bem ilustra: o fechar
de cortinas com a banda ainda a tocar deu origem ao mais sublime caos. Tenho
curiosidade por estruturas que permitam a ocorrência de algo indeterminado e
gosto de justapô-las a material de organização muito clara. Interessa-me, por
exemplo, quando as coisas falham – como a Goldsworthy, quando aquelas horas de
trabalho em que ele tenta impor algum tipo de ordem são pura e simplesmente varridas
por uma rajada de vento.
É como se a arte
passasse a ser secundária, como se fosse apenas outro acaso da vida. “Step
Across The Border” [documentário sobre Fred Frith] tem algo disso, dessa
mistura entre facto e ficção?
Na altura foi difícil distanciar-me do retrato que o filme
propunha. Mas habituei-me a ele e, de certa maneira, até me deu algum prazer
abrir mão dessa versão de mim que por ali andava. Não o vejo há algum tempo,
mas a sua produção educou-me muito: a filmagem, a captação do som, a montagem.
E durante esse processo tive de aprender a abdicar do controlo total sobre o
que fazia, quase como se fosse obrigado a ouvir a minha própria música pela
primeira vez. Vermo-nos assim, no ecrã, ensina-nos a desapegarmo-nos de algumas
coisas.
Penso na retórica que
acompanha a improvisação, por exemplo, em que se fala sempre de um ato de
libertação quando, por vezes, tem mais a ver com prisões.
Mas de que forma nos deixamos aprisionar? É isso o mais
importante. Por opiniões? Pelos
nossos hábitos? Se o permitirmos, tudo nos pode prender.
Você também lidou com
formas eminentemente canónicas. Compôs quartetos de cordas para Iva Bittová ou
Irvine Arditti, tem quartetos para saxofone ou guitarra. O que o atraiu, aí?
Encontro uma suprema satisfação a compor quartetos.
Principalmente porque, dada a minha falta de instrução formal, muito desse
trabalho me obriga a lidar com os limites daquilo que consigo dominar!
No passado trabalhou
com gente como Robert Wyatt ou Mike Oldfield, com autodidatas e instrumentistas
profissionais, escreveu para grandes formações e distinguiu-se enquanto solista.
Alguma vez sentiu que levava uma vida marcada por paradoxos?
Geralmente
tento aproveitar as oportunidades que se me apresentam. Tive imensa sorte no
facto de isso me permitir entrar em contacto com um conjunto de parceiros tão
variado, mas não é algo que considere particularmente paradoxal. A musicalidade
tem raramente a ver com coisas tão formais: são a paixão e a dedicação que lhe
dão forma.
Alguém como Brian
Eno, por exemplo [Frith colaborou em “Before and After Science” ou “Music for
Films”], terá acreditado que você era um estilista absolutamente singular,
identificável às primeiras notas. No que habitualmente se designa por ‘sessões
de estúdio’, alguma vez receou tornar-se um mero artifício?
Evitei esse tipo de trabalho mais comercial apenas quando senti
que me estavam mais a convidar por ser guitarrista do que por ser quem eu era.
Mas nunca deixei de ir a estúdio para projetos desses. Ainda recentemente
estive a trabalhar com o Aaron Novik, com a banda Matthew Edwards and the
Unfortunates ou com os Rusconi e é, muito sinceramente, do mais divertido que
pode haver.
Desde os tempos dos
Henry Cow e dos Art Bears que toca em conjuntos. Tem de lidar com muitas
restrições nesse contexto?
Fazer parte de um coletivo apresenta um conjunto de desafios
muito próprios, é certo, mas possui, também, vantagens muito evidentes. Há
pouco tempo atrás, a ouvir as gravações ao vivo dos Henry Cow recentemente
editadas, impressionou-me o quão livre foi a nossa ação! Fiquei comovido a
ouvir esses discos, porque se tornou claro que, mesmo nesse contexto, em
condições de trabalho tão atentas ao detalhe, lidávamos muito abertamente com
as fórmulas que criávamos.
Sei que em breve se
vão reunir, em homenagem a Lindsay Cooper [falecida em 2013].
Sim, todos nós, os que consigo estiveram nos Henry Cow,
interpretaremos as canções que escreveu para o grupo. Mas também se ouvirão
peças para agrupamentos como News From Babel, Film Group ou Oh Moscow. E
teremos sessões improvisadas entre muitos dos seus antigos colegas. Sinto que
vai ser um tributo maravilhoso para uma instrumentista e compositora
absolutamente extraordinária.
Recordando outros
momentos de liberdade e camaradagem, a sua discografia nova-iorquina lê-se como
uma agenda em que não sobrava um dia livre! Como foi chegar à cidade e
descobrir criadores como Bill Laswell, Kramer, Tom Cora, Arto Lindsay ou John
Zorn?
Assim que pela primeira vez visitei Nova Iorque, em 1978,
senti que era ali que devia estar. Seguiram-se os cinco anos mais criativos e
intensos da minha vida – o período entre 1979 e 1984. O simples facto de ainda
ser amigo e de tocar com tantos dos músicos que conheci nessa altura diz tudo
sobre essa fase. Mais que tudo, mudou-me a atitude perante a vida: não percas
tempo, faz com que cada atuação conte, ouve o mundo à tua volta e continua a pôr-te
em causa.
Com os Skeleton Crew, os Massacre, os
Material, os Curlew ou os The Golden Palominos, era como se subitamente ruíssem
as barreiras entre géneros musicais?
Os historiadores do
período julgam que nós tínhamos muita consciência do que estávamos a fazer, mas
não me parece que isso seja assim. Acho que estávamos atentos ao espírito
daquela época e limitávamo-nos a reagir em conformidade.
Quando toca hoje com os Massacre celebram o
passado ou a vossa liberdade atual?
É sempre uma
celebração do aqui e agora e, por isso, é sempre diferente. Ainda no ano
passado tocávamos em Tóquio e aquilo que o Bill e o Charles faziam juntos só me
inspirava veneração!
Por vezes há colaborações suas que parecem
desaparecer antes ainda de estarem formadas. Só damos por elas quando sai um
disco ao vivo ou quando aparece um vídeo no YouTube. Conforme se perguntaria a
um cientista a fazer trabalho de campo, a documentação possui algum valor
acrescentado?
Muitas dessas
colaborações desenvolvem-se ao largo de longos períodos de tempo. E não tem
tanto a ver com pesquisa quanto com aquelas conversas que mantemos durante anos
com os nossos amigos mais chegados, em que é sempre possível pegar-lhe no ponto
em que a tínhamos deixado mesmo se há muito que não nos falávamos. Acontece
documentá-las quando elas possuem algo de especial, mas não se adiciona
propriamente um valor: é o seu enquadramento que se altera.
Estas perceções exteriores influenciam-no?
Recordo o LP “Cheap at Half the Price” – que se tomaria por um disco dos
Residents a fazerem versões dos Talking Heads. Houve, então, quem achasse que
veiculava, aí, uma voz algo sintética, menos honesta. Essas reações
dissuadiram-no de se tornar um escritor e intérprete de canções?
Nunca me preocupei com
isso. Tentei ver se conseguia fazer um disco de canções caseiro, sozinho,
recorrendo ao que se passava na minha vida ou ao que lia nos jornais.
Fizeram-se algumas construções críticas sobre o disco posteriormente mas
garanto-lhe que não têm nada a ver comigo! E sempre cantei. Primeiro num coro, na igreja, e depois num glee
club escolar. Cheguei a ser vocalista de uma banda de blues, no
início dos anos 60, e escrevia canções para mim nos Henry Cow, pelo menos até aparecer
a Dagmar. Mas a minha voz ouve-se em muitos contextos, dos Skeleton Crew aos
Cosa Brava.
A estrutura que associamos à canção informa
o seu trabalho enquanto improvisador?
Por vezes tento
improvisar experimentalmente a partir do formato de uma canção. Pegar, digamos,
numa forma tipo ABABABC e tentar improvisar completamente numa parte ao mesmo
tempo que pretendo manter exatamente iguais as restantes. Divertimo-nos muito
às voltas dessa ideia no quarteto de guitarras.
Falar de canções leva-nos à música popular
e, até, ao folclore. Nessa perspetiva vêm-me à memória o espantoso “Un Peu de
l'Âme des Bandits” – o seu disco com os Aksak Maboul – ou álbuns como “Gravity”
ou Speechless”. O que o levou a gravar música de inspiração folclórica no
pós-punk?
Senti que tinha a música folk no
sangue desde que peguei numa guitarra. As minhas primeiras atuações foram todas
em bares ou clubes recreativos para operários no norte de Inglaterra em que era
essa a música que se fazia. Aprendia as canções a partir de discos e estendi
posteriormente os meus conhecimentos à música dos Balcãs por intermédio de um
colega de escola, o Bojan. Fez sempre parte de mim e especialmente em “Gravity”
permiti-me explorá-la no contexto muito peculiar em que me encontrava: suspenso
entre a minha vida em Nova Iorque e a minha antiga vida na Europa.
Já
nos Naked City cabia o folclore e muito mais, naquelas versões curtas, chocantes,
inquisitivas. Aquela densidade e ambiguidade… Era um obstáculo?
Um obstáculo, não: um desafio. Estava a
tocar o meu segundo instrumento [baixo elétrico] e tinha de me esforçar imenso para
conseguir acompanhar aquele grupo de génios. Mas era muito estimulante.
Pergunto-me se os membros do Ensemble Modern
não ficaram algo chocados quando lhes apresentou a música de “Traffic
Continues”?
Eles são demasiado
realizados e profissionais para se deixarem chocar seja com o que for!
Convidaram-me para lhes compor uma peça e eu tentei unir os nossos dois mundos.
Quis até introduzir algum perigo na situação em que nos encontrávamos, mas acho
que eles nem repararam. Por outro lado, é verdade que nunca mais me ligaram!
Muito do seu trabalho parece depender da
comunicação, da comunhão e da comunidade. É aquilo que você toca uma
representação dos seus pensamentos e são aqueles com quem você toca uma
representação dos seus sentimentos?
Estarei de acordo com a sua premissa, sim. E
é óbvio que uma das decisões mais importantes que qualquer músico tem a fazer é
a de escolher com muito cuidado as pessoas com quem vai fazer música. Mas os
meus pensamentos e os meus sentimentos não são coisas que eu consiga separar,
assim, de modo a colocá-los em compartimentos separados. Pelo menos tenho
esperança que assim seja.
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