Partirá do espaço, este segundo dia
do “Jazz em Agosto”. Hoje, às 18h00, no Auditório 3, exibir-se-á “The Soul of a
Man” (repetirá amanhã), o episódio que Wim Wenders realizou, em 2003, no âmbito
da série televisiva “The Blues”, e que arranca precisamente com imagens do
célebre ‘disco dourado’ que, a bordo da sonda Voyager, entre registos de corais
georgianos e de pigmeus centro-africanos, de peças de Bach e de Beethoven ou do
coaxo de rãs e do ziziar de cigarras, transporta a voz de Blind Willie Johnson
entoando ‘Dark Was the Night, Cold Was the Ground’ para fora do Sistema Solar. No
filme, evocam-se ainda fragmentos das biografias de Skip James ou J. B. Lenoir
e dirigem-se atuações mais ou menos didáticas de Lou Reed, Nick Cave, Jon
Spencer ou Beck. Curiosamente, às 21h30, no Anfiteatro ao Ar Livre, não é de
crer que o ardor do blues esteja arredado
do encontro entre Matthew Shipp & Evan Parker. Indícios disso mesmo acham-se
em “Rex, Wrecks & XXX”, o duplo que gravaram no ano passado e que, à boleia
do festival, se lança agora em Portugal. Marc Ribot, que aparece em “The Soul
of a Man”, chegará amanhã e, consigo, trará os polímates Shahzad Ismaily e Ches
Smith e um ar de rock. Às 21h30, no Anfiteatro ao Ar Livre, é provável que
revisite repertório fixo – enquanto Ceramic Dog – em dois álbuns: para situar, em
“Party Intellectuals” cantou uma versão de ‘Break on Through’, dos Doors, e em
“Your Turn” passou revista a um hino sindicalista e a outro comunista. Não
menos política, a sessão liderada pelo guitarrista Marc Ducret – programada
para segunda-feira, às 21h30, igualmente no Anfiteatro ao Ar Livre – não negará
à partida nenhum género musical que desconheça. No momento em que se anuncia o
cumulativo “Tower-Bridge”, estará com o francês o sexteto que gravou “Tower,
Vol. 3”, um prolongamento dos seus interesses por incesto e ludismo e distopia
conforme patenteação de Vladimir Nobokov. Terça-feira, no mesmo local e à mesma
hora, o Luís Lopes ‘Lisbon Berlin Trio’ trará outras insólitas configurações –
no CD para a Clean Feed chamava-lhe ‘Mutant Free’ – para guitarra, contrabaixo
e bateria. Mas é na quarta-feira à noite (depois de se ter mostrado o filme que
Alan Roth dedicou ao New York Art Quartet) que o estranho se transformará em
extraordinário quando, do escuro, surgir esse xamã que responde pelo nome de
Keiji Haino.
Verão após verão, seguir o “Jazz em
Agosto” é também acompanhar um cenário vivo em que a volatilidade estética do
certame não fica a dever à transitoriedade do mundo natural, aos temporários
humores da sua assistência ou aos imprevistos do espaço urbano. Todos os anos,
aí se cruzam iconoclastia e pedagogia ao som dos motores dos aviões nas idas e vindas da
Portela e das sirenes de ambulâncias nos arredores do Hospital de Santa Maria, do
grasnar dos patos no lago e do restolhar de gatos à caça, do cicio nas
copas das árvores e dos silvos no canavial e, quer no palco, quer na plateia,
aí se reúnem aqueles que, à semelhança de Carl Sagan quando organizou o ‘disco
dourado’, acreditam que uma efetiva representação da nossa música terá de
possuir de tudo isso um pouco. Nessa medida, num contexto particularmente
atmosférico engendrado por Franz Hautzinger, não surpreenderá ninguém se Haino,
na próxima quarta-feira, às 21h30, se puser a uivar para a lua em quarto
crescente, planeando purgas, habitando o blues,
como há uma década fazia ao cantar ‘See That My Grave is Kept Clean’, de Blind
Lemon Jefferson, o tema, já agora, a que Reed dá voz no filme de Wenders. E não
admirará ninguém se esse uivo se tornar o instante mais musical do “Jazz em
Agosto” de 2014. Exorcismo feito, quinta-feira, às 18h00, prosseguirão as
sessões de cinema com “Dancing to a Different Drummer”, documentário consagrado
a Chico Hamilton, por Julian Benedikt, e, às 21h30, para os cultores do
inaudito, Fred Frith, Joëlle Léandre e Hamid Drake estrearão um trio no
Anfiteatro. A semana fechará com “BasseContinue”, às 18h00, no Auditório 3,
onde se ficará a saber alguma coisa do muito que sempre se receou perguntar à
contrabaixista francesa – o retrato é de Christine Baudillon. Ainda na
sexta-feira, às 21h30, Léandre sairá da tela para tornar à cena, na ocasião escoltada
por Frith, Urs Leimgruber e Alvin Curran, num quarteto que designou MMM
(MillsMusicMafia, já que, presume-se, Mills Brothers estava ocupado) e que
alude aos laços que ela própria, Frith e Curran mantiveram com a universidade
californiana. A lua estará cheia e as expetativas são as melhores. O festival termina
no fim-de-semana que vem.
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