Como se sabe, a ideia, boa e absurda, foi, em termos aproximados,
aplicada pela Reduced Shakespeare Company às obras do autor de “Hamlet”. E,
mesmo se confundem o nome da companhia norte-americana nas suas notas de
apresentação, Charles Möeller e Claudio Botelho, encenador e dramaturgo deste delírio,
reconhecem o vínculo: “Ali, poucos atores misturam todos os enredos e
personagens do Bardo para criar uma nova peça, com sentido único e satírico.” Pensaram
em Chico e “a ideia brilhou como uma lâmpada diante de nós.” Há coisa de 15
dias, e após uma temporada no Rio de Janeiro, o resultado – que, a rondar os
100 minutos, tem a duração de um jogo de futebol com os descontos – estreou no
Teatro FAAP, em São Paulo, e manter-se-á em cartaz até dia 7 de setembro.
Quanto ao que passa em palco, a gravação, em estúdio, com o elenco
original (Davi
Guilhermme, Estrela Blanco, Felipe Tavolaro, Lilian Valeska, Renata Celidonio e
Malu Rodrigues), destapa só a ponta do véu. Mas, ainda pela pena dos produtores,
é útil saber que “Não é uma revista. Também não é um recital. Escrevemos uma
peça nova, personagens, enredo, e nosso texto são as canções. (…) Em nenhum
momento há qualquer referência às peças ou filmes originais.” Nada a apontar,
se não for tida como incúria a omissão daqueles que, ao longo dos anos,
tornaram Chico seu comissionista criando as circunstâncias para que nascessem
as canções: por exemplo, no livreto, nem uma palavra para Naum Alves de Souza (de
“O Grande Circo Místico”), para Augusto Boal (de “O Corsário do Rei”), Cacá
Diegues (de “Quando o Carnaval Chegar”) ou Miguel Faria Jr. (de “Para Viver um Grande Amor”).
Mas claro que
sobram as canções. Para recordar já um par delas, e também assim se referir que
estão, no CD, com ordem trocada face ao que determina a arte gráfica da edição,
aqui surgem ‘Biscate’, em que Valeska faz a sua melhor imitação de Gal, que a
cantou em 93, ao contrário de outros instantes em que traz antes à memória o
artifício que pode haver no grito de uma gaivota, ou ‘A Violeira’, em que
Blanco encarna um provincianismo perfumado a pachuli, capaz de lembrar Chayene,
de “Cheias de Charme”, mais até do que Elba Ramalho, que em 83 deu voz à canção.
O musical procede à domesticação dos mais distintos afetos e dos instintos
mais desavindos. Ignora “Dança da Meia-Lua” e “Cambaio” mas evoca muito dos
filmes de Diegues ou Faria Jr. e da “Ópera do Malandro” (de ‘Pedaço de Mim’ a ‘Geni e o Zepelin’) ou de
“Gota d’Água” (de ‘Bem Querer’ a ‘Flor da Idade’). Tem momentos inspirados
(como ao cruzar ‘O Meu Amor’, ‘Tango de Nancy’ e ‘Ana de Amsterdam’ – três
temas de outras tantas peças) e está imbuído daquele paradoxo que leva a que
entendamos as grandes verdades como uma ilusão e que encontremos nas maiores
mentiras toda a verosimilhança do real. Está cheio de teatro.
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