Acontece, no disco, um par de
vezes: Haden abranda, encontra um último fôlego durante a escalada para,
depois, solando, ganhar velocidade ribanceira abaixo; Jarrett acompanha-o com
cautela pela descida e estende-lhe a mão esquerda; dir-se-ia um diretor
desportivo ao volante de um carro de apoio passando um bidão a um ciclista, até
que se dissipa a imagem; num pontual estalar de dedos percebe-se que o tempo,
afinal, não foi a lado nenhum; ali tinha ficado, hipnotizado por um ato de
ilusionismo. No seu melhor, é disso, de transfiguração, que tratam contrabaixista
e pianista nestes registos de março de 2007. Ação que o desaparecimento de
Haden a 11 de julho torna ainda mais sugestiva. Numa carta entretanto publicada,
e que se presume ter redigido logo após a morte do seu destinatário, Jarrett diz:
“Charlie… Ias-te enrolando no contrabaixo à medida que tocavas; habitava-lo,
fazias amor com ele; e, todos nós, os que te ouviam e que contigo tocavam, era
isso mesmo que escutávamos (…). Até quando o consumo de drogas te deixava de
rastos era na música que pensavas.” Na proporção exata de empatia que um
egomaníaco permite a si próprio, continuava: “Foi um caso raro, um verdadeiro
original. A sua afinação era perfeita, tinha um ouvido enorme e possuiu, no
jazz, o mais caloroso e cativante tom da história do contrabaixo.” O que diz
muito. Principalmente vindo de um homem que tem distribuído elogios ao longo
dos anos com a mesma facilidade com que, a cada natal, um tio avarento vai
dando prendas aos sobrinhos.
Como já concluiu quem aos dois segue
as pegadas, estes duetos começam onde tinham acabado os de “Jasmine” (editado
em 2010 mas proveniente das mesmas sessões de gravação). São tão lineares
quanto uma estrada num deserto e provocam semelhantes miragens: ouve-se ‘My Old
Flame’ ou ‘My Ship’ ou ‘It Might As Well Be Spring’ e dançam no ar os vultos de
Mae West, Sarah Vaughan, Billie Holiday, Anita O’Day, June Christy, Ella
Fitzgerald; passa-se por ‘Everything Happens To Me’ ou ‘Where Can I Go Without
You’ ou ‘Every Time We Say Goodbye’ e esfumam-se no retrovisor os rostos de
Frank Sinatra, Helen Merrill, Rosemary Clooney, Peggy Lee, Julie London, Dinah
Washington. Algumas canções estão semeadas de silêncios, como um cortejo
fúnebre debaixo de chuva. Outras são como aqueles dias de verão que aparentam concentrar
toda a felicidade à superfície da terra. ‘‘Round Midnight’, de Monk, e ‘Dance
of the Infidels’, de Powell, são levadas a passear ao ar livre – Jarrett não
admite falhas ou frustrações e toca-as como um alienista a interpretar distúrbios
mentais. Pressente-se aqui o calculismo, a fascinação e a possessividade com
que um colecionador de arte admira as peças que adiciona ao seu espólio. Quando
delas finalmente desvia o olhar, nunca mais lhes quer pôr a vista em cima.
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