18 de outubro de 2014

Sun Ra and His Arkestra “Marshall Allen Presents: In The Orbit Of Ra” (Strut, 2014) & Sun Ra “The Complete Remastered Recordings On Black Saint & Soul Note” (Cam Jazz, 2014)




Não se imagina a azáfama. Afinal, agindo por impulsos que possuem tanto de mecânico quanto de alquímico, cruzar-se-ão hoje à tarde cerca de 50 pessoas no palco do Teatro Maria Matos. Mas se há instantes na vida de uma instituição em que se impõe grandiloquência no gesto, e em que se aconselha a sanidade a ficar à porta, este será um deles. Pedro Santos, programador na sala lisboeta e principal ideólogo da matiné, confessa ter-se deixado mover por uma força irresistível: “Foi a resposta a um desafio que nos propusemos: ‘Depois de comemorarmos os 100 anos de John Cage, em 2012, que centenário poderíamos agora assinalar que fosse tão ou mais relevante do que esse?’ A escolha era óbvia.” Tal como o passo seguinte: “Convidar músicos a repensar a sua própria música através dos códigos de Sun Ra.” Lançado o repto de infinitas matizes a Nuno Rebelo, Bruno Pernadas, Mo Junkie e Gala Drop, as expetativas são consideráveis. Rebelo comandará uma pequena orquestra em que se inserem um coro de câmara e instrumentistas recrutados no Conservatório Calouste Gulbenkian, de Braga, e, diz-nos, conferiu ênfase às “canções de Sun Ra”, optando por renunciar ao “território da improvisação”. Pernadas, que liderará uma formação de dez elementos e dois vocalistas, conta ao Expresso que teve como objetivo “criar algo novo a partir das ferramentas que caracterizam [a produção de Ra]”, e elenca os constituintes que lhe aguçaram o engenho: “Desenvolvimento melódico, impacto sonoro, polifonia, ideia de continuidade, improvisação coletiva, não-repetição estrutural, ritmo, dinâmica, textura e cor”. Como mantra, acrescenta, uma fórmula um dia saída da boca de Ra: “Se a natureza nunca se repete, porque haveria eu de me repetir?” A mesmíssima pluralidade atraiu Mo Junkie, que nos refere um fascínio “pelas temáticas filosóficas e cósmicas associadas à forma de [Ra] pensar a música e, sobretudo, pela essência diversa dos sons” de que se socorria. Apropriadamente, não nos oculta que foi difícil “encontrar a equação para juntar ao puzzle”, ou não tivesse Ra transitado continuamente entre as questões de ciência e as da fé, privilegiando ora o estudo e o conhecimento, ora o que passava por incultura e intuição. Ou melhor, por uma cultura tão única que dava mostras de não ter possuído precedentes ou de ter gerado efetiva subsequência. É o que nos relatam os Gala Drop, quando afirmam estarem “cientes da sua grandeza e da impossibilidade em emular ou, sequer parcialmente, tentar recriar a sua obra”. Na solução alvitrada pela banda ressoa uma das diretivas do homenageado: “Criámos música informada por Sun Ra mas que julgamos ser nossa.” Nenhuma vez exigiu ele outra coisa a alguém.

Mas Sun Ra, que faleceu em maio de 1993, permanece um enigma. “In The Orbit Of Ra”, um templo de epifanias, retrata esse xamã do insólito e não se dirige exclusivamente a neófitos. Tem um som que supera, até, o das reedições em CD da Evidence, dos anos 90, e um trio de versões inéditas, entre as quais uma ‘Trying To Put The Blame On Me’ em que, sozinho ao piano, Ra canta: “Sinto-me só/ Tão só/ Como uma espécie diferente de ser”. Aí, num ambiente tão perfumado de ais que se diria evocar com ironia as canónicas lamúrias do blues, não deixa de sair reforçada a mais evidente distinção da sua carreira: a sujeição ao signo da alteridade. Como se sabe, desde que nasceu (a 22 de maio de 1914, em Birmingham, no Alabama) que Sun Ra desertou progressivamente do quotidiano. E não custa sugerir que foi o facto de ter crescido na mais segregada cidade dos EUA aquilo que originou a sua conversão ao inaudito. Isso, e a presunção de ilegitimidade que sempre o acompanhou ligada a uma perturbação congénita: a criptorquidia, que lhe causava permanente mal-estar e que cedo transformou numa prova de individualidade. Daí, também, uma obsessão com os limites do corpo (não há menção a encontros sexuais seus) e a reincidência no separatismo enquanto fonte de poder e fundamentação cosmogónica. Partindo desta compilação e saltando para a integral das suas gravações para a Black Saint e Soul Note, fica patente que, não sendo bem daqui ou de tempo algum, como proferia, a sua música foi provocadoramente inquisitiva mesmo à luz da que lhe era contemporânea e ocasionalmente enformava. Mascarava-se de jazz, é certo, mas convocava igualmente tudo o que lhe permitisse libertar-se do vácuo criado pela exclusão. Assim, num momento em que nem uma nem outra tinham lugar à face da terra, o vernáculo da vanguarda confundia-se com a arte mais arcaica e, num compêndio de subtilezas, funcional mas jamais frívola, a Arkestra, que era a sua família, parecia renovar o esplendor, a nobreza e a elegância com que Fletcher Henderson ou Duke Ellington, por exemplo, haviam escapado ao anonimato. A sua missão, deixada num verso, era “criar um novo mundo para cada um”. Hoje, em Lisboa, passa de mão tal encargo.

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