Não se imagina a azáfama. Afinal, agindo
por impulsos que possuem tanto de mecânico quanto de alquímico, cruzar-se-ão
hoje à tarde cerca de 50 pessoas no palco do Teatro Maria Matos. Mas se há instantes
na vida de uma instituição em que se impõe grandiloquência no gesto, e em que
se aconselha a sanidade a ficar à porta, este será um deles. Pedro Santos,
programador na sala lisboeta e principal ideólogo da matiné, confessa ter-se deixado mover por uma força irresistível:
“Foi a resposta a um desafio que nos propusemos: ‘Depois de comemorarmos os 100
anos de John Cage, em 2012, que centenário poderíamos agora assinalar que fosse
tão ou mais relevante do que esse?’ A escolha era óbvia.” Tal como o passo
seguinte: “Convidar músicos a repensar a sua própria música através dos códigos
de Sun Ra.” Lançado o repto de infinitas matizes a Nuno Rebelo, Bruno Pernadas,
Mo Junkie e Gala Drop, as expetativas são consideráveis. Rebelo comandará uma
pequena orquestra em que se inserem um coro de câmara e instrumentistas
recrutados no Conservatório Calouste Gulbenkian, de Braga, e, diz-nos, conferiu
ênfase às “canções de Sun Ra”, optando por renunciar ao “território da
improvisação”. Pernadas, que liderará uma formação de dez elementos e dois
vocalistas, conta ao Expresso que teve como objetivo “criar algo novo a partir
das ferramentas que caracterizam [a produção de Ra]”, e elenca os constituintes
que lhe aguçaram o engenho: “Desenvolvimento melódico, impacto sonoro,
polifonia, ideia de continuidade, improvisação coletiva, não-repetição
estrutural, ritmo, dinâmica, textura e cor”. Como mantra, acrescenta, uma fórmula
um dia saída da boca de Ra: “Se a natureza nunca se repete, porque haveria eu
de me repetir?” A mesmíssima pluralidade atraiu Mo Junkie, que nos refere um
fascínio “pelas temáticas filosóficas e cósmicas associadas à forma de [Ra]
pensar a música e, sobretudo, pela essência diversa dos sons” de que se socorria.
Apropriadamente, não nos oculta que foi difícil “encontrar a equação para
juntar ao puzzle”, ou não tivesse Ra transitado continuamente entre as questões
de ciência e as da fé, privilegiando ora o estudo e o conhecimento, ora o que passava
por incultura e intuição. Ou melhor, por uma cultura tão única que dava mostras
de não ter possuído precedentes ou de ter gerado efetiva subsequência. É o que nos
relatam os Gala Drop, quando afirmam estarem “cientes da sua grandeza e da
impossibilidade em emular ou, sequer parcialmente, tentar recriar a sua obra”.
Na solução alvitrada pela banda ressoa uma das diretivas do homenageado:
“Criámos música informada por Sun Ra mas que julgamos ser nossa.” Nenhuma vez
exigiu ele outra coisa a alguém.
Mas Sun Ra, que faleceu em maio de
1993, permanece um enigma. “In The Orbit Of Ra”, um templo de epifanias, retrata
esse xamã do insólito e não se dirige exclusivamente a neófitos. Tem um som que
supera, até, o das reedições em CD da Evidence, dos anos 90, e um trio de
versões inéditas, entre as quais uma ‘Trying To Put The Blame On Me’ em que, sozinho
ao piano, Ra canta: “Sinto-me só/ Tão só/ Como uma espécie diferente de ser”. Aí,
num ambiente tão perfumado de ais que se diria evocar com ironia as canónicas lamúrias
do blues, não deixa de sair reforçada
a mais evidente distinção da sua carreira: a sujeição ao signo da alteridade.
Como se sabe, desde que nasceu (a 22 de maio de 1914, em Birmingham, no Alabama)
que Sun Ra desertou progressivamente do quotidiano. E não custa sugerir que foi
o facto de ter crescido na mais segregada cidade dos EUA aquilo que originou a
sua conversão ao inaudito. Isso, e a presunção de ilegitimidade que sempre o
acompanhou ligada a uma perturbação congénita: a criptorquidia, que lhe causava
permanente mal-estar e que cedo transformou numa prova de individualidade. Daí,
também, uma obsessão com os limites do corpo (não há menção a encontros sexuais
seus) e a reincidência no separatismo enquanto fonte de poder e fundamentação
cosmogónica. Partindo desta compilação e saltando para a integral das suas
gravações para a Black Saint e Soul Note, fica patente que, não sendo bem daqui
ou de tempo algum, como proferia, a sua música foi provocadoramente inquisitiva
mesmo à luz da que lhe era contemporânea e ocasionalmente enformava.
Mascarava-se de jazz, é certo, mas convocava igualmente tudo o que lhe
permitisse libertar-se do vácuo criado pela exclusão. Assim, num momento em que
nem uma nem outra tinham lugar à face da terra, o vernáculo da vanguarda confundia-se
com a arte mais arcaica e, num compêndio de subtilezas, funcional mas jamais
frívola, a Arkestra, que era a sua família, parecia renovar o esplendor, a nobreza
e a elegância com que Fletcher Henderson ou Duke Ellington, por exemplo, haviam
escapado ao anonimato. A sua missão, deixada num verso, era “criar um novo
mundo para cada um”. Hoje, em Lisboa, passa de mão tal encargo.
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