Chamavam-lhe “Mr. Weird”. Ou
melhor, “a minha alcunha, na verdade, era ‘Flash’”, explica-nos Shorter ao
telefone, entre risos, a partir de sua casa, nas colinas suspensas acima da
linha de smog de Hollywood. É um
facto. E havia-o já Michelle Mercer esclarecido na biografia “Footprints: The
Life and Work of Wayne Shorter”: ele tinha escrito “Mr. Weird” (traduza-se para
português como se quiser: “Sr. Esquisito”, por exemplo) no estojo do seu
saxofone, e Alan, o seu irmão, dava-se a conhecer como “Doutor Estranho”. A
fundamentação abstrata era óbvia: os Shorter julgavam-se um caso aparte, uma
símile, até, para a aura de mistério que supunham necessária à criação. E, tratando-se
seguramente de um pormenor, não deixa de ser significativo que, na extensa
discografia de Wayne, os dois tenham apenas por uma vez gravado juntos, e que
esse tema, em 1965 incluído em “The All Seeing Eye”, se intitulasse
‘Mephistopheles’. Somem-se-lhe ‘JuJu’, ‘Speak no Evil’, ‘Prince of Darkness’ ou
‘Down in the Depths’ e quase se pressente uma ominosa presença do mal em muitas
das suas construções. “Olhe, tenho uma frase para si”, continua, em jeito de advertência:
“Não tente converter o Diabo! Mais vale torná-lo um aliado seu. E é possível,
assim, que essa natureza maligna que há em tudo o que nos rodeia lhe venha a
ser útil. Mas faça-o num quadro de iluminação, isto é, entendendo sempre a
diferença entre o bem e o mal. É trabalho para uma vida inteira, sabe? Mais
ainda quando se exerce um ofício que nos obriga à total cumplicidade com o momento.”.
De chofre, Wayne discorre acerca da
arte da improvisação, na qual possui uma assinatura especialmente grífica. Esboçou-a
entre 1959 e 1963, enquanto diretor musical dos Messengers, de Art Blakey, com os
quais lançou “Roots & Herbs”, “The Freedom Ringer” ou “Free for All”, e
patenteou-a de modo inequívoco através das sessões que liderou para a Blue Note
(duas delas, precisamente “JuJu”, de 1964, e “Speak no Evil”, de 1965, foram este
ano alvo de remasterização e reedição em vinil). Depois, expandiu-a ao
ingressar no quinteto de Miles Davis responsável por “E.S.P.”, “Sorcerer” ou
“Nefertiti” e, por fim, inserido nos Weather Report, abreviou-a gnomicamente no
instante exato em que aparentava ter um pé na eternidade. Reconhece retrospetivamente:
“Ao longo dos anos, o desafio tem sido mesmo esse: viver o momento. É o mais perto
que andaremos de descobrir o que é a vida, de celebrar o que ela contém de mais
original e de aceitar esse estranho compromisso em que se tenta representar o enigma
da existência. Exprimimo-nos normalmente em termos dualísticos mas a mim preocupa-me
mais sublinhar o que há de comum em tudo aquilo que nos separa.”.
Discursa lentamente, como um
místico. Ensaia sentenças que lembram slogans
publicitários e arrisca longas tiradas destinadas a pôr a nu todo o tipo de
paradoxos: “A realidade das coisas é que nada é descartável. É o seu valor que
está em trânsito. Isso e perdermos de vista a sua função. É como uma sociedade
a debater questões de mau-comportamento. Pode puni-lo, mas conseguirá aprender com
ele?” O retrato que esboça desde a sua mansão de cristal no Olimpo é de crise
permanente: “Dizia há dias a uns amigos que é como num divórcio: se não tens
noção de que a tua ex-mulher é a tua próxima mulher, então não vale a pena. Ou
seja, que importância tem, na tua vida, o conhecimento?”.
Em Shorter cruzam-se continuamente
códigos contraditórios: atentando às suas composições pressupõe-se um constante
fluxo de obtusas ruminações nilóticas, obscuras aparições orientalistas, arcanos
arrepios de um feiticeiro, futuristas fórmulas de um matemático. Escreveu um
tema a que chamou ‘Os Mouros’ e outro que apelidou de ‘Lusitanos’. “Há uma
geração atual que fala para dentro”, desabafa subitamente: “Investiga, estuda… E
a sociedade não tem nenhuma interrogação a fazer-lhe. As pessoas não estão
familiarizadas com aquele adágio do Einstein em que se relativiza genialmente a
mente humana: a prova de que ela existe é justamente essa, a de ser capaz de
contrariar as certezas em que se escora. E é isso que eu tento tocar!”.
Menciona práticas culturais distintas,
viagens, línguas. “Acredita que não sei português?”, pergunta. “Nunca o aprendi!
[Shorter viveu 30 anos com uma portuguesa, Ana Maria Patrício, que viria a
falecer no desastre aéreo do voo TWA 800, em 1996, e mais tarde veio a casar
com a brasileira Carolina dos Santos, sua companheira até hoje; em 1974, na
órbita do Clube da Esquina, gravou “Native Dancer”, com Milton Nascimento,
Wagner Tiso ou Robertinho Silva] Mas quando o ouço a ser falado ele faz-me
viajar. Navego pelos seus sons e ritmos. É como escutar um conto de fadas. Isso
interessa-me. Ensinam-nos que com a morte tudo acaba, que não há cá a história
do ‘E viveram felizes para sempre’. Mas, porque não? O que nos garante que o
conto de fadas não pode ser a realidade? Não é essa a grande lição da arte?”.
“Fomos convidados para um evento na
Universidade de Stanford”, prossegue, tentando chegar ao cerne do problema. “Discutia-se
o acelerador de partículas, o Bosão de Higgs, etc, e um astrofísico diz-me:
‘Nós, cientistas, conduzimos agora o nosso trabalho de maneira artística,
improvisando, dir-se-ia. Aprendemos com música como a sua’. Porque já não é só
a tese cosmológica do Big Bang. É o antes. O multiverso por oposição ao
universo. O que me recorda outra coisa”, recomeça: “Fui um dos homenageados na
Achievement Summit deste ano. E durante um par de dias, na convenção, entre
alocuções, palestras e conferências, colocar as artes e as ciências exatas em
pé de igualdade pareceu a coisa mais natural do mundo. Estamos todos a
trabalhar num sentido.” Demora-se nos detalhes, conta como foi, que estava lá o
George Lucas e a Diana Ross, que tocou com Esperanza Spalding, e, sem
interromper o raciocínio, conclui: “Trabalhamos para que o mundo compreenda que
somos todos absolutamente individuais. E que se perceba que o futuro depende de
aumentarmos a nossa aptidão em negociar com o desconhecido. Por isso não há
forma de recorrer ao convencional, a estratégias gastas. Tem tudo a ver com
dança. Com movimento. É uma alternativa à passividade. Temos de tomar a
dianteira em tudo o que nos diz respeito. Porque nós somos educados a
adormecer, já reparou? Desde pequenos, no berço, não há nada que os nossos pais
mais desejem. Que passemos a vida a dormir. Mas o nosso trabalho”, repete, “é a
nossa responsabilidade. E a nossa responsabilidade é a de fazermos as coisas de
acordo com os nossos próprios critérios de avaliação.”.
Com Shorter, tempo e espaço
deslizam. Muitos olharam para a sua obra como uma emanação da Providência.
Outros, no que vai dar ao mesmo, notavam indícios de uma inteligência
particularmente alienante. Os assuntos sucedem-se – astronomia, geometria,
xadrez – e o que se imagina é a serpente que morde a sua cauda. A conversa estende-se,
duplicamos praticamente os vinte minutos que tínhamos reservado e acaba assim:
Compôs para a Orpheus Chamber Orchestra, não foi?
“Sim. Adoro-os. São tão
democráticos. Há paridade a todos os níveis. E isso motivou-me. O quarteto está
lá, claro [Shorter, com Danilo Pérez ao piano, Brian Blade na bateria e John
Patitucci ao contrabaixo], mas eles jamais estarão em segundo plano. Tem piada.
Reuni-me com um representante da orquestra e ele disse-me: ‘Sr. Shorter, já sei
como é que vamos conseguir fazer isto’. E eu respondi-lhe: Ah, sim? Como? Ele
vira-se para mim e diz: ‘Shazam!’ E põe-me um boneco do Capitão Marvel à
frente! E entretanto mandou-me pelo correio um Lanterna Verde. Sabe o que isso quer
dizer, não sabe?
Que ele também crê no multiverso? Wayne Shorter ri-se e a chamada
cai.
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