6 de dezembro de 2014

Sugestões de Natal



Maria Bethânia “Meus Quintais” (Biscoito Fino, 2014)
Ouvem-se, por estas canções, coisas como “a aldeia contra o futuro”, “ventre da terra”, “voz de um Brasil distante”, “voz do vento”, “o vento de lá”, “que a mata beija e abraça”, e percebe-se que Bethânia procura o país virginal, quase uma coisa dela que ocasionalmente partilha, um folclore antigo que põe a habitar uma língua nova. Acaba apropriadamente, em ‘Folia de Reis’, a louvar o “santo filho de Maria”.

Ostad Elahi “The Sacred Lute” (Le Chant du Monde, 2014)
Num rincão do Met, em Nova Iorque, está patente uma exposição consagrada ao iraniano Ostad Elahi, aquele que, mal comparando, está para a tambura como Paredes se encontra para a guitarra portuguesa. Ou seja, foi alguém que, sob certa perspetiva, sozinho disputou, transformou e em muito expandiu os limites do que se considera a autêntica expressão cultural de um povo. Esta exemplar antologia ilustra-o.

“Memoirs of an Arabian Princess – Sounds of Zanzibar” (Winter & Winter, 2014)
A princesa de que aqui se fala é Emily Ruete, que do seu país guardou apenas um saco com areia do mar, autora, em 1886, da autobiografia cujo espetro sonoro se evoca. Talvez por isso tanto se ouçam as ondas nesta ficção. Incluem-se gravações de taarab realizadas em Zanzibar em fevereiro e o que se pressente é que a música serve para superar até o destino mais trágico.

“Charlie Haden – Jim Hall” (Impulse!, 2014)
Em abril, acerca desta gravação, Ethan Iverson escrevia: “É tão gratificante ouvir música tocada com tamanho desvelo e desassombro, ainda que tenhamos de dedicá-la a Hall, falecido em 2013”. Não lhe passava pela cabeça que três meses depois seria a vez de Haden se ir. Há assim algo de testamentário neste inédito registo de 1990. Escutá-lo é conhecê-los.

David Virelles “Mbókó” (ECM, 2014)
Não se organizará propriamente sob o signo da Natividade, mas é verdade que se subintitula: “Música Sacra para Piano, Dois Contrabaixos, Bateria e Biankoméko Abakuá”. É uma sincrética narrativa afro-cubana construída à sombra do pecado original que pariu o jazz. O piano de Virelles carrega a memória de um homem que dá os seus primeiros passos numa terra estranha, e dos sortilégios com que se propõe a cobri-la.

Dr. John “Ske-Dat-De-Dat: The Spirit of Satch” (Proper, 2014)
É o espírito de Louis Armstrong que se evoca mas é a própria sintaxe que se baralha. E com o cadinho de Nova Orleães a transbordar de entranhas não é uma homenagem ao nascimento de uma música que se faz mas uma ménage com todas as músicas o que, aqui, se promove. Terence Blanchard, Blind Boys of Alabama, McCrary Sisters ou Dirty Dozen Brass Band ajudam à festa. Nada é pessoal e tudo é confessional.

Mostly Other People do the Killing “Blue” (Hot Cup, 2014)
Melhor que o “Kind of Blue” só “Kind of Blue”. Ou algo do género. Isso, desde que se olhe para o mítico disco de Miles da mesma forma com que hoje se encara a ida a cena de qualquer peça de Shakespeare: não esperando a subida a palco dos King’s Men mas aguardando que novos atores despertem no texto significados obscuros. Peter Evans, Jon Irabagon, Ron Stabinsky, Moppa Elliott e Kevin Shea não fazem por menos.

Sylvain Rifflet & Jon Irabagon “Perpetual Motion: A Celebration of Moondog” (Jazz Village, 2014)
Moondog era tão bruto e alegórico e utópico e distópico como a esquina nova-iorquina em que assentou arraiais durante três décadas. Da cegueira ao capacete viquingue, tudo em si significava – até a evidência de estar parado num ponto de passagem. Mas hoje pouco se toca a sua insólita obra. Rifflet, Irabagon e um coro infantil visitaram-no em Valhala.

Charpentier: Canticum ad Beatam Virginem Mariam
Montserrat Figueras (s), La Capella Reial de Catalunya, Le Concert des Nations, Jordi Savall (d) (Alia Vox, 2014)
As edições de Savall começam a ser impossíveis de sintetizar. Aqui, comemora o 25º aniversário do Concert des Nations através da reedição de um CD da Astrée. Mas traz também a missa “Assumpta est Maria”, gravada em 2004. Tudo em redor da devoção à Virgem e com paradigma em “Salve Regina”.

“The Silver Album”
Anne-Sophie Mutter (vln), Lambert Orkis (p) (Deutsche Grammophon, 2014)
Do 2014 de Mutter esperavam-se antologias. Por ser natural que o ano que se seguiu ao do seu quinquagésimo aniversário fosse embalado pela contemplação retrospetiva mas também porque se celebravam as Bodas de Prata da sua relação artística com Orkis. Mas qualquer movimento da violinista é eminentemente prospetivo. E, aqui, entre canónicas visitas aos arquivos, corrobora-o uma estreia de Penderecki.

“Murray Perahia Plays Chopin” (Sony, 2014)
Regressa aos escaparates a série Sony Classical Masters com uma mão-cheia de títulos eminentemente recomendáveis de que se destacam os de Bruno Walter e Isaac Stern às voltas com Brahms ou o do Quarteto Budapest a tocar Mozart. Mas mais difícil de ignorar, ainda, é este, em que Perahia é como um zéfiro, convertendo Chopin num prazer muito lá de casa, confortável e caprichoso, arisco e aristocrático.

“111 Classics for Christmas” (Deutsche Grammophon, 2014)
Sem grandes inquietações éticas, transigindo com as circunstâncias, alinham-se Bach e os Boston Pops. Mas não há o que atacar. E é precisamente quando se revela mais conformista que esta caixa retém de modo mais íntimo o essencial do que pretende transmitir: que o sagrado, mesmo a pisar a linha, ainda supera o profano. Destacam-se Gardiner, Pinnock, McCreesh, Otter, Fink, Studer e a família von Trapp.

“Carols from the Old & New Worlds Vol.III”
Chamber Choir Ireland, Paul Hillier (d) (Harmonia Mundi, 2014)
Prolonga Hillier a dignidade partilhada de que o Natal comunga através de um conjunto de vilancetes de inspiração sacra e obras corais de propensão litúrgica edificado em torno das “Antífonas do Ó”. Trespassa séculos, atravessa o Atlântico e está bem no repertório irlandês que tudo isso simboliza. Submete anacronismos ao poder da quadra e em ‘Gesù Bambin l’è Nato’ toca o céu.

“Legendary Moments from the New Year’s Concerts Vol. 2” (Sony, 2014)
Como não poderia deixar de ser, começa com o ritual do “Danúbio Azul”, o tema que acompanhava as refeições das “pessoas da sala de jantar” cantadas pelos tropicalistas. Com Kleiber, Barenboim, Mehta, Maazel ou Muti há, aqui, uma espécie de concílio de senadores em que se proclama que até pode haver mérito irrefutável em não se viver em Viena – apenas não no dia 1 de janeiro.

“Lux de Caelo – Music for Christmas”
Choir of Clare College, The Dmitri Ensemble, Graham Ross (d) (Harmonia Mundi, 2014)
Nada ampara melhor o abismo histórico que este disco propõe do que “A Hymn to the Mother of God”, de Tavener, lauda à criação. De resto, do século XV a Bach e a Schoenberg, Ross mantém-se um magistral arquiteto que tem o vidro como matéria-prima única e, da sua lavra, estreia “Lullay, My Liking”, um coral todo ele ambíguo e tenso e absolutamente arcaico e moderno.

“The Originals” (50 CD Deutsche Grammophon, 2014)
A nostalgia move montanhas. Isto, porque instantes há em que uma obra canónica se impõe no tempo atual como se não pudesse provir de outro tempo qualquer. É o que sugere a série de gravações históricas “The Originals”, quase nos 250 títulos e por ora sintetizada nesta caixa de 50 CD e num fetichista suplemento de 6 LP. Mas nada belisca a irredutibilidade desta música. O “Dies irae” de Fricsay, do “Requiem” de Verdi, ainda faz a terra tremer. E mantém-se uma aparição Kleiber, lembrado nas “Quinta” e “Sétima” de Beethoven, fruto de um extraordinário conjunto de circunstâncias. Em “A Flauta Mágica”, Böhm dirige um Wunderlich que transforma em chocolate cada palavra de Tamino. E em “Tristão e Isolda” leva Windgassen e Nilsson a decretar para todo o sempre a impossibilidade do amor. Do mesmo fatalismo comunga o Fischer-Dieskau das “Canções de um Viandante”. Evocar a morte era mergulhar no mais profundo dos abismos. Feitiço que compreendia Karajan, presente em dez dos 50 títulos. Está lutuoso na “Quinta” de Mahler ou nas “Quatro Últimas Canções” de Strauss, aqui com Janowitz. E se em Ravel e Debussy se concentra mais nas cores do arco-íris já no “Concerto para Violoncelo” de Dvorák, com Rostropovich, se consagra antes a expandir o tamanho do céu. E há os pianistas, claro: Argerich, a solo e com Abbado, a tocar cada peça como se fosse mudar o mundo, Gilels a gerar Grieg, Pollini a pegar em Chopin como se o polaco tivesse escrito para si. Tudo como se o destino de cada obra tivesse sido precisamente esse de se ver registado em cada um destes momentos.

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