Ouvem-se,
por estas canções, coisas como “a aldeia contra o futuro”, “ventre da terra”,
“voz de um Brasil distante”, “voz do vento”, “o vento de lá”, “que a mata beija
e abraça”, e percebe-se que Bethânia procura o país virginal, quase uma coisa
dela que ocasionalmente partilha, um folclore antigo que põe a habitar uma
língua nova. Acaba apropriadamente, em ‘Folia de Reis’, a louvar o “santo filho
de Maria”.
Ostad Elahi “The Sacred Lute” (Le Chant du Monde, 2014)
Num
rincão do Met, em Nova Iorque, está patente uma exposição consagrada ao
iraniano Ostad Elahi, aquele que, mal comparando, está para a tambura como
Paredes se encontra para a guitarra portuguesa. Ou seja, foi alguém que, sob
certa perspetiva, sozinho disputou, transformou e em muito expandiu os limites
do que se considera a autêntica expressão cultural de um povo. Esta exemplar antologia ilustra-o.
A
princesa de que aqui se fala é Emily Ruete, que do seu país guardou apenas um
saco com areia do mar, autora, em 1886, da autobiografia cujo espetro sonoro se
evoca. Talvez por isso tanto se ouçam as ondas nesta ficção. Incluem-se
gravações de taarab realizadas em Zanzibar
em fevereiro e o que se pressente é que a música serve para superar até o destino
mais trágico.
“Charlie Haden – Jim Hall” (Impulse!, 2014)
Em
abril, acerca desta gravação, Ethan Iverson escrevia: “É tão gratificante ouvir
música tocada com tamanho desvelo e desassombro, ainda que tenhamos de
dedicá-la a Hall, falecido em 2013”. Não lhe passava pela cabeça que três meses
depois seria a vez de Haden se ir. Há assim algo de testamentário neste inédito
registo de 1990. Escutá-lo é conhecê-los.
Não
se organizará propriamente sob o signo da Natividade, mas é verdade que se
subintitula: “Música Sacra para Piano, Dois Contrabaixos, Bateria e Biankoméko
Abakuá”. É uma sincrética narrativa afro-cubana construída à sombra do pecado
original que pariu o jazz. O piano de Virelles carrega a memória de um homem
que dá os seus primeiros passos numa terra estranha, e dos sortilégios com que
se propõe a cobri-la.
Dr. John “Ske-Dat-De-Dat: The Spirit of Satch” (Proper,
2014)
É
o espírito de Louis Armstrong que se evoca mas é a própria sintaxe que se baralha.
E com o cadinho de Nova Orleães a transbordar de entranhas não é uma homenagem
ao nascimento de uma música que se faz mas uma ménage com todas as músicas o que, aqui, se promove. Terence
Blanchard, Blind Boys of Alabama, McCrary Sisters ou Dirty Dozen Brass Band
ajudam à festa. Nada é pessoal e tudo é confessional.
Melhor que o “Kind of Blue” só “Kind of Blue”. Ou algo do
género. Isso, desde que se olhe para o mítico disco de Miles da mesma forma com
que hoje se encara a ida a cena de qualquer peça de Shakespeare: não esperando a
subida a palco dos King’s Men mas aguardando que novos atores despertem no
texto significados obscuros. Peter Evans, Jon Irabagon, Ron Stabinsky, Moppa
Elliott e Kevin Shea não fazem por menos.
Sylvain Rifflet & Jon Irabagon “Perpetual Motion:
A Celebration of Moondog” (Jazz Village, 2014)
Moondog
era tão bruto e alegórico e utópico e distópico como a esquina nova-iorquina em
que assentou arraiais durante três décadas. Da cegueira ao capacete viquingue,
tudo em si significava – até a evidência de estar parado num ponto de passagem.
Mas hoje pouco se toca a sua insólita obra. Rifflet, Irabagon e um coro
infantil visitaram-no em Valhala.
Charpentier:
Canticum ad Beatam Virginem Mariam
Montserrat Figueras (s), La Capella Reial de Catalunya,
Le Concert des Nations, Jordi Savall (d) (Alia
Vox, 2014)
As
edições de Savall começam a ser impossíveis de sintetizar. Aqui, comemora o 25º
aniversário do Concert des Nations através da reedição de um CD da Astrée. Mas
traz também a missa “Assumpta est Maria”, gravada em 2004. Tudo em redor da devoção
à Virgem e com paradigma em “Salve Regina”.
Anne-Sophie Mutter (vln), Lambert Orkis (p) (Deutsche
Grammophon, 2014)
Do
2014 de Mutter esperavam-se antologias. Por ser natural
que o ano que se seguiu ao do seu quinquagésimo aniversário fosse embalado pela
contemplação retrospetiva mas também porque se celebravam as Bodas de Prata da
sua relação artística com Orkis. Mas qualquer movimento da violinista é
eminentemente prospetivo. E, aqui, entre canónicas visitas aos arquivos, corrobora-o
uma estreia de Penderecki.
“Murray Perahia Plays Chopin” (Sony, 2014)
Regressa
aos escaparates a série Sony Classical Masters com uma mão-cheia de títulos eminentemente
recomendáveis de que se destacam os de Bruno Walter e Isaac Stern às voltas com
Brahms ou o do Quarteto Budapest a tocar Mozart. Mas mais difícil de ignorar,
ainda, é este, em que Perahia é como um zéfiro, convertendo Chopin num prazer
muito lá de casa, confortável e caprichoso, arisco e aristocrático.
“111 Classics for Christmas” (Deutsche Grammophon,
2014)
Sem
grandes inquietações éticas, transigindo com as circunstâncias, alinham-se Bach
e os Boston Pops. Mas não há o que atacar. E é precisamente quando se revela
mais conformista que esta caixa retém de modo mais íntimo o essencial do que
pretende transmitir: que o sagrado, mesmo a pisar a linha, ainda supera o
profano. Destacam-se Gardiner, Pinnock, McCreesh, Otter, Fink,
Studer e a família von Trapp.
Chamber Choir Ireland, Paul Hillier (d) (Harmonia
Mundi, 2014)
Prolonga
Hillier a dignidade partilhada de que o Natal comunga através de um conjunto de
vilancetes de inspiração sacra e obras corais de propensão litúrgica edificado em
torno das “Antífonas do Ó”. Trespassa séculos, atravessa o Atlântico e está bem
no repertório irlandês que tudo isso simboliza. Submete anacronismos ao poder
da quadra e em ‘Gesù Bambin l’è Nato’ toca o céu.
“Legendary Moments from the New Year’s Concerts Vol. 2”
(Sony, 2014)
Como
não poderia deixar de ser, começa com o ritual do “Danúbio Azul”, o tema que
acompanhava as refeições das “pessoas da sala de jantar” cantadas pelos tropicalistas.
Com Kleiber, Barenboim, Mehta, Maazel ou Muti há, aqui, uma espécie de concílio
de senadores em que se proclama que até pode haver mérito irrefutável em não se
viver em Viena – apenas não no dia 1 de janeiro.
Choir of Clare College, The Dmitri Ensemble, Graham
Ross (d) (Harmonia Mundi, 2014)
Nada
ampara melhor o abismo histórico que este disco propõe do que “A Hymn to the
Mother of God”, de Tavener, lauda à criação. De resto, do século XV a Bach e a
Schoenberg, Ross mantém-se um magistral arquiteto que tem o vidro como
matéria-prima única e, da sua lavra, estreia “Lullay, My Liking”, um coral todo
ele ambíguo e tenso e absolutamente arcaico e moderno.
“The
Originals” (50 CD Deutsche Grammophon, 2014)
A
nostalgia move montanhas. Isto, porque instantes há em que uma obra canónica se
impõe no tempo atual como se não pudesse provir de outro tempo qualquer. É o que
sugere a série de gravações históricas “The Originals”, quase nos 250 títulos e
por ora sintetizada nesta caixa de 50 CD e num fetichista suplemento de 6 LP. Mas
nada belisca a irredutibilidade desta música. O “Dies irae” de Fricsay, do “Requiem”
de Verdi, ainda faz a terra tremer. E mantém-se uma aparição Kleiber, lembrado nas
“Quinta” e “Sétima” de Beethoven, fruto de um extraordinário conjunto de
circunstâncias. Em “A Flauta Mágica”, Böhm dirige um Wunderlich que transforma
em chocolate cada palavra de Tamino. E em “Tristão e Isolda” leva Windgassen e
Nilsson a decretar para todo o sempre a impossibilidade do amor. Do mesmo
fatalismo comunga o Fischer-Dieskau das “Canções de um Viandante”. Evocar a
morte era mergulhar no mais profundo dos abismos. Feitiço que compreendia
Karajan, presente em dez dos 50 títulos. Está lutuoso na “Quinta” de Mahler ou nas
“Quatro Últimas Canções” de Strauss, aqui com Janowitz. E se em Ravel e Debussy
se concentra mais nas cores do arco-íris já no “Concerto para Violoncelo” de Dvorák,
com Rostropovich, se consagra antes a expandir o tamanho do céu. E há os
pianistas, claro: Argerich, a solo e com Abbado, a tocar cada peça como se fosse
mudar o mundo, Gilels a gerar Grieg, Pollini a pegar em Chopin como se o polaco
tivesse escrito para si. Tudo como se o destino de cada obra tivesse sido
precisamente esse de se ver registado em cada um destes momentos.
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