O seu discurso é
quase sempre alegórico. A uma estação de rádio japonesa, por exemplo, conta coisas
de quando nasceu: “Sou de 1938, [do signo] de Peixes. E, mesmo antes de vir ao
mundo, em Memphis, registaram-se as maiores cheias ocorridas na história da
região. Toda aquela água para que eu pudesse simplesmente seguir na corrente.”
De frente a si, incrédulo, o jornalista Kiyoshi Koyama vai abrindo a boca e
assentindo até lembrar uma personagem de Miyazaki a registar espanto. Lloyd sugere
aquele “sentimento oceânico” que chegou, via Romain Rolland, de Ramakrishna a
Freud e que, mais adiante no documentário, Herbie Hancock distingue desta maneira:
“Ele tinha o seu próprio som. Ninguém alguma vez soou assim, captando uma certa
fluidez, quase como que imerso num rio, produzindo cascatas de som que
praticamente possuíam aspetos ambientais.” O retrato ajusta-se na perfeição
àquele que, como poucos, no jazz saudou a chegada da Era de Aquário.
Aliás, Lloyd visita
a biografia como quem dá conta de uma inevitabilidade: “Phineas Newborn Jr. era
o nosso Bach”, “Duke, Basie ou Dinah, quando era pequeno, costumavam hospedar-se
em minha casa, e eu, de manhã, ficava à espera que se levantassem, cheio de
perguntas para lhes fazer”, “adquiri experiência ao lado de Howlin’ Wolf, B. B.
King ou Bobby Bland”, diz, e não se percebe se está a referir-se àquilo que se
aprende na escola, na igreja ou ao que se fica a saber apenas quando às duas se
falta. Ou invoca intervenções do destino: “Em finais de 50 fui para Manhattan como
se vai a Meca e arranjei quarto no Alvin, defronte do Birdland. Dou de caras
com o Booker Little, que tinha sido meu colega de liceu, e ele pergunta-me: ‘Onde
é que estás a ficar?’ Respondi-lhe que estava na maior, num hotel, e ele
disse-me: ‘Isso é que não, vens comigo para minha casa. Não estás aqui para
viver na maior, mas sim para trabalhar no teu caráter.’ Ele tinha 21 anos e uma
alma perfeitamente realizada.”
Até que Buddy
Collette o recomendou a Chico Hamilton e parte para a Califórnia. Recorda
Michael Cuscuna: “Entre 1962 e 1963, a sua combinação com Chico, Gabór Szabó e
Albert Stinson parecia feita no céu. Gabór, então, dava vida a tudo o que
Charles escrevesse.” Noutro depoimento, o diretor da Mosaic é corroborado por
Robbie Robertson: “O Charles era mais aberto e imaginativo do que muitos músicos
de jazz do período… e quando arranjou aquele guitarrista húngaro foi demais”. Foi
há pouco lançado precisamente um fascinante inédito que ilustra isso que o
fundador dos The Band acha indescritível: “Manhattan Stories”, um par de
registos ao vivo, de 1965, do grupo de Lloyd com Szabó, Ron Carter e Pete La
Roca, ou seja, o quarteto de “Nirvana”, o LP que a Columbia só editou em 1968. Temas
que em disco – em “Of Course, Of Course” – pouco passavam os cinco minutos,
chegam aqui aos 12 ou aos 17, cada extenso solo uma fórmula mística a despontar
na consciência dos seus executantes.
Claro que a
etapa que se lhe seguiu, a do quarteto com Keith Jarrett, Cecil McBee e Jack
DeJohnette, é que dá mostras, essa sim, de estar no jazz apenas pela capacidade
que o jazz tem de se revelar um instrumento universal. Há no DVD um clipe em
que não se imagina um grupo a poder dar mais de si, até que, em simultâneo,
Lloyd dá uns passos para o lado para se alinhar novamente com o microfone,
Jarrett centra o banco do piano, DeJohnette corrige a posição da tarola e McBee
levanta a cabeça das cordas do contrabaixo olhando à sua volta para ver onde
está, como se estivessem todos subitamente de volta à mesma dimensão. Mas, está
escrito, tudo se extinguiu e ao documentário resta remexer nas cinzas. Com
candura, Lloyd fala das décadas de 70 e 80 como uma criança que descobre que é preciso
aceitar a tristeza para se sentir a alegria. Dos últimos 25 anos de gravações
para a ECM há muitas imagens mas pouco mais se descobre do que isto: cada
ocorrência é uma bênção e só o momento atual interessa porque, lá está, o que
aqui começa pode bem durar até à eternidade.
Sem comentários:
Enviar um comentário