10 de janeiro de 2015

Charles Lloyd: “Arrows Into Infinity” (ECM, 2014) & "Manhattan Stories" (Resonance, 2014)



O seu discurso é quase sempre alegórico. A uma estação de rádio japonesa, por exemplo, conta coisas de quando nasceu: “Sou de 1938, [do signo] de Peixes. E, mesmo antes de vir ao mundo, em Memphis, registaram-se as maiores cheias ocorridas na história da região. Toda aquela água para que eu pudesse simplesmente seguir na corrente.” De frente a si, incrédulo, o jornalista Kiyoshi Koyama vai abrindo a boca e assentindo até lembrar uma personagem de Miyazaki a registar espanto. Lloyd sugere aquele “sentimento oceânico” que chegou, via Romain Rolland, de Ramakrishna a Freud e que, mais adiante no documentário, Herbie Hancock distingue desta maneira: “Ele tinha o seu próprio som. Ninguém alguma vez soou assim, captando uma certa fluidez, quase como que imerso num rio, produzindo cascatas de som que praticamente possuíam aspetos ambientais.” O retrato ajusta-se na perfeição àquele que, como poucos, no jazz saudou a chegada da Era de Aquário.

Aliás, Lloyd visita a biografia como quem dá conta de uma inevitabilidade: “Phineas Newborn Jr. era o nosso Bach”, “Duke, Basie ou Dinah, quando era pequeno, costumavam hospedar-se em minha casa, e eu, de manhã, ficava à espera que se levantassem, cheio de perguntas para lhes fazer”, “adquiri experiência ao lado de Howlin’ Wolf, B. B. King ou Bobby Bland”, diz, e não se percebe se está a referir-se àquilo que se aprende na escola, na igreja ou ao que se fica a saber apenas quando às duas se falta. Ou invoca intervenções do destino: “Em finais de 50 fui para Manhattan como se vai a Meca e arranjei quarto no Alvin, defronte do Birdland. Dou de caras com o Booker Little, que tinha sido meu colega de liceu, e ele pergunta-me: ‘Onde é que estás a ficar?’ Respondi-lhe que estava na maior, num hotel, e ele disse-me: ‘Isso é que não, vens comigo para minha casa. Não estás aqui para viver na maior, mas sim para trabalhar no teu caráter.’ Ele tinha 21 anos e uma alma perfeitamente realizada.”

Até que Buddy Collette o recomendou a Chico Hamilton e parte para a Califórnia. Recorda Michael Cuscuna: “Entre 1962 e 1963, a sua combinação com Chico, Gabór Szabó e Albert Stinson parecia feita no céu. Gabór, então, dava vida a tudo o que Charles escrevesse.” Noutro depoimento, o diretor da Mosaic é corroborado por Robbie Robertson: “O Charles era mais aberto e imaginativo do que muitos músicos de jazz do período… e quando arranjou aquele guitarrista húngaro foi demais”. Foi há pouco lançado precisamente um fascinante inédito que ilustra isso que o fundador dos The Band acha indescritível: “Manhattan Stories”, um par de registos ao vivo, de 1965, do grupo de Lloyd com Szabó, Ron Carter e Pete La Roca, ou seja, o quarteto de “Nirvana”, o LP que a Columbia só editou em 1968. Temas que em disco – em “Of Course, Of Course” – pouco passavam os cinco minutos, chegam aqui aos 12 ou aos 17, cada extenso solo uma fórmula mística a despontar na consciência dos seus executantes.

Claro que a etapa que se lhe seguiu, a do quarteto com Keith Jarrett, Cecil McBee e Jack DeJohnette, é que dá mostras, essa sim, de estar no jazz apenas pela capacidade que o jazz tem de se revelar um instrumento universal. Há no DVD um clipe em que não se imagina um grupo a poder dar mais de si, até que, em simultâneo, Lloyd dá uns passos para o lado para se alinhar novamente com o microfone, Jarrett centra o banco do piano, DeJohnette corrige a posição da tarola e McBee levanta a cabeça das cordas do contrabaixo olhando à sua volta para ver onde está, como se estivessem todos subitamente de volta à mesma dimensão. Mas, está escrito, tudo se extinguiu e ao documentário resta remexer nas cinzas. Com candura, Lloyd fala das décadas de 70 e 80 como uma criança que descobre que é preciso aceitar a tristeza para se sentir a alegria. Dos últimos 25 anos de gravações para a ECM há muitas imagens mas pouco mais se descobre do que isto: cada ocorrência é uma bênção e só o momento atual interessa porque, lá está, o que aqui começa pode bem durar até à eternidade.

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