Não
podia ser mais clara de intenção, ficando para a posteridade a epistolar
dedicatória: “Al mio caro Amico Haydn”. A 1 de setembro de 1785, educadamente
italianizado, correto em tudo o que pudesse dizer ou fazer, e com sincera
esperança que o favor do seu amigo amparasse o “frutto di una lunga, e
laboriosa fattica”, assim dispunha Mozart os seus novos quartetos sob a
invocação dessoutros que, quatro anos antes, não inteiramente desprovido de
intenção didática havia Haydn publicado ao abrigo do Op. 33. Note-se que,
tutelada por este mesmo Cuarteto Casals, através da série “Gold”, foi há pouco
colocada no mercado pela Harmonia Mundi uma acutilante versão desse avuncular
opúsculo e que, na presente edição, presumindo-se que tenha ficado para
segundas núpcias a metade que lhe falta, estão apenas três dos seus
subsidiários. Um deles, o “Quarteto de Cordas Nº 14 em Sol maior”, K.387, dito
‘Primavera’, entremeado num que em muito o precedeu e noutro que em quase tanto
o seguiu, será amanhã, ao fim da tarde, incluído no recital que o Casals
preparou para o Grande Auditório da Gulbenkian, em Lisboa. Neste disco, é um
prodígio. A irrequieta primeira melodia do Allegro vivace assai, por exemplo,
raramente se moveu com a velocidade e a indiscrição de um mexerico, como aqui.
É igualmente rara a fluída articulação das suas mais extremas dinâmicas:
dir-se-ia que praticamente sumaria a diferença entre o agir e o pensar sem
subalternizar qualquer categoria. Aliás, em todo o andamento, pese embora o
portento de proporção que acima de tudo se revela, Mozart visa o físico e o
metafísico. Já no Menuetto é com fidelidade que se expõem certos elementos
arcaicos, como o que deixa visível de outra era o arquiteto a quem foi
encomendado o restauro de um edifício antigo. E o Andante cantabile concentra
virtuosismo e agilidade dramática: quando o seu tempo se torna espaçado sugere
a imagem de um rio a congelar mesmo diante dos nossos olhos. A acompanhá-lo,
nesta gravação, um “Quarteto de Cordas nº 16 em Mi bemol maior”, K.428, em que
cada pausa é bem pensada e cada aceleração deliciosamente irrefletida, até
transformar o Menuetto num arraial de levantar poeira, e um “Quarteto de Cordas
nº 19 em Dó maior”, K.465, em virtude da aventura harmónica do Adagio, dito
‘Dissonante’, a provar-se um milagre de forma e função, intencionalidade e
invenção, tão recheado de receios quanto de certezas, um discípulo a honrar
mais o seu mestre ao infringir precisamente as regras que este lhe deixou.
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