Ondina Pires é perentória: “Foi um
susto! Era inevitável entrar por aqui adentro mas ninguém estava preparado para
aquilo. Talvez por isso se tenha mantido um corpo externo à nossa própria
realidade.” Fala, claro, da chegada do rock’n’roll a Portugal, ali entre finais
de 50 e inícios de 60, e logo dá uma achega quanto à sua progressiva
assimilação pelo bucolismo mais ufano e pelo urbanismo mais pueril. Afinal,
tudo se passava sob as vistas horrorizadas da brigada dos bons costumes e
impunha-se contrariar os ferinos instintos de um estilo que apelava permanentemente
ao escândalo. “De repente”, prossegue, “o que tínhamos por cá era um rock
assexuado e inofensivo, e isso chocou o Victor. Aliás, se pudéssemos concentrar
a ação inicial do Victor num manifesto seria precisamente esse, o de cantar o
que ele chama de verdadeiro rock, o rock’n’roll à americana, em inglês, rebelde
e selvagem, proibido e fascinante, como quem mostra à metrópole que isto não se
trata de mais uma cançoneta ou de um fadinho qualquer.”
Vindo de Luanda, após adolescência
e infância passadas num Moçambique prenhe de eventos, Victor Gomes aterra em
Lisboa em abril de 1963. Virá a deixar a cidade, e o país, em dezembro de 1967,
para só regressar em definitivo no início da década de 90, e, bem sabe quem
conhece o meio, à sua passagem deixou a terra queimada, um rastro de pragas. Além
de um interessante acervo fotográfico, Ondina reuniu escritos diversos com
origem em publicações como “O Século”, “Diário Popular”, “Crónica Feminina” ou “Plateia”
e o que sobressai é uma sequência de “esgares e piruetas”, um vórtice de “doença”,
“frenesi”, “loucura” e “fúria”, uma contínua caricatura que o cronista
Sebastião Leiria, no “Jornal do Algarve”, em agosto de 1964, assim sumariou: “Depois
de Victor berrar os sete farrapos em várias posições, berra de cócoras muito
irritado, não se sabe porquê. Os demais Gatos também se põem de cócoras. Depois
arroja-se ao chão, os Gatos também. Tudo estendido a coçar a barriga. Então Victor
põe o microfone de pés para o ar e reboleia-se no sobrado, lembrando os
besouros quando de barriga para cima se querem voltar.”
A cada concerto, conjugando o
desconhecido, Victor Gomes diz às audiências nacionais que a experiência do rock
lhes é tão estranha que nem a língua em que falam a pode representar. “Essa
questão é importantíssima e ninguém a mencionou”, acrescenta Ondina. “O Victor,
de Lourenço Marques, veio com o inglês debaixo da língua e chegou a um país de
agudíssimos atrasos. E, conhecendo o repertório que ele dominava [Elvis
Presley, Little Richard, Carl Perkins, Jerry Lee Lewis, Gene Vincent, etc], é
óbvio que a censura também não o entendia lá muito bem.” Quando Vasco Morgado
se lembrou de colocar Victor Gomes e os Gatos Negros a tocar num palco
improvisado em pleno Saldanha, a sua arguta réplica a uns agentes da PIDE que
lhe questionaram as intenções ilustra este paradoxo na perfeição: “Os senhores
não se preocupem: isto é apenas rock”. De súbito, os multifários e inefáveis
expoentes comportamentais reclamados pela música jovem das democracias modernas,
que Victor imitava, ganhavam exposição no centro de uma capital envelhecida e subdesenvolvida
e eram augúrio do que poucos se permitiam imaginar: um novo posicionamento de
Portugal perante o mundo.
No entanto, contrapõe Ondina: “Se
dissermos ao Victor que a sua ação no período é eminentemente política, ele não
o vai aceitar.” Provavelmente por recusar-se a admitir a instrumentalização que
aí se implica. E, depois, porque é evidente que não gerou descendência. Que ninguém
ousou aproveitar-se da originalidade que preconizou. “Falando com o Victor”, insiste,
“nota-se o agasto causado pela tomada de consciência de que lhe era impossível
ter feito mais. Que tudo em seu redor permaneceu muito bem-comportado e
politicamente correto. Quando fez parte de júris dos Concursos de Ié-Ié [a
partir de 1965] começou a aborrecer-se. Achava que não tinham aprendido com o
seu exemplo e sentia falta de figuras ferozes em palco. Até que dá o rock por
morto e enterrado e se vira para a música ligeira. Mas com aquela energia
erótica e insubmissa, a partir microfones, a gritar, a empurrar os colegas da
banda, a saltar para o público e a arrastar-se pelo chão, fico com a impressão
que havia mais gente na altura a desejar ter sido como o Victor mas que não
teve coragem, a quem faltou garra e a necessidade física de extravasar tudo
aquilo daquela maneira.”
É um retrato que fica por fazer.
Este “Juntos Outra Vez” – título inspirado na única gravação que Victor
realizou nos anos 60 – termina com a seguinte nota: “Muitos [dos] que
conviveram ou ainda convivem com o Victor Gomes foram contactados. Grande parte
deles não respondeu ou deu evasivas.” Ondina revalida o desabafo: “Há um
embaraço crónico em relação ao passado neste país. Tudo indica que se preferem
mascarar os factos relativos às décadas de 50, 60 e 70. Há uma enorme falta de
confiança e pouquíssima autoestima. Este passar com uma esponja por cima dos
assuntos também é um sinal de carência de amor-próprio.” Põe mais
deliberadamente o dedo na ferida: “Não é nada simples dedicar uma biografia a
uma pessoa viva e ela própria muito complexa. As fontes históricas são raras e ocasionalmente
anedóticas. Procuro confirmar testemunhos e encontro impaciência e indignação.
A maioria das pessoas do tempo do Victor – músicos, bailarinas, promotores, jornalistas,
fotógrafos – preferiu não falar. Parece que toda a gente tem medo de toda a
gente, que toda a gente tem vergonha de toda a gente.”
Se fosse um filme, e Ondina recorre
com frequência a técnicas narrativas associadas à escrita para cinema, “Juntos
Outra Vez” teria a metade passada em Portugal a preto e branco e, apesar de
tudo, a metade passada em África a cores. Em 1968, quando Victor viaja por
Moçambique a atuar para as tropas, a convite do Movimento Nacional Feminino, dá
uma entrevista ao “Notícias da Beira” em que diz que o “ambiente artístico
metropolitano é terrivelmente artificial”, que está rodeado de “mesquinhez” e
“cinismo”, que os artistas se tentam “queimar uns aos outros”, entre “invejas e
intrigas”. Ondina confirma que estes momentos de disforia se repetem no
percurso de Victor: “Seria uma forma de viver em paz no presente, esse acertar de
contas com o passado. Mas há muitos assuntos que ele não quis abordar. Olha-se
para o que ele diz e pensa-se imediatamente: foi mesmo assim?” Em privado, discuta-se
o assunto com contemporâneos seus que não vão faltar diferentes versões para os
mesmos acontecimentos. Mas, sob certa perspetiva, antes de se dirigir ao
cidadão, o que o rock exemplarmente sintetiza é essa submissão aos variados e
contrastantes pulsares do indivíduo.
Quantas vidas teve Victor? Houve a
do menino do Alto do Pina que aos seis anos é subitamente levado pela família para
Lourenço Marques para logo se ver deixado aos cuidados dos salesianos no
Instituto Mouzinho de Albuquerque; a do miúdo que, à caça e à pesca, explorava
as pastagens e os lagos na fronteira com a Suazilândia e que, nunca tendo
recebido visitas dos pais, pedia todos os anos pelo Natal uma pressão de ar; a
do rapazote que, no dia a seguir a ter feito 15 anos, fugiu do instituto para,
meses depois, andar pelos prostíbulos da rua Araújo com “poupa cheia de
brilhantina, jeans, blusão de ganga
de gola levantada e atitude desafiadora”; a de aprendiz de soldador que queria
cantar; a de futebolista no Sporting Clube de Lourenço Marques, hoquista no
Sindicato ou pugilista no Desportivo de Malhangalene; a de vedeta instantânea,
vencedor de “A Hora do Caloiro” no Rádio Clube de Moçambique; a de prematuro
pai de família tornado caçador; a de regressado ao mundo do espetáculo e
imigrado em Angola com a coroa de ‘Rei do Rock’; a de retornado a Lisboa com
nome feito no teatro de revista, no concurso do ‘Rei do Twist’, no cinema, no
circuito do Maxime, do Fontória, do Ritz, de uma cidade que crescia em volúpia
e violência a cada madrugada; a daquele que se fixou na Rodésia deixando uma
mulher em cada porto; a de criador de gado que teve uma fazenda em Balla Balla
e que mais tarde foi mercenário; a de soldador em Inglaterra e França; a de
carismático crooner no T-Club, no
Espelho d’Água, em Belém, entregue à gestão das suas memórias e a uma plateia
que sabia invejar a sua juventude. Certamente tantas mais.
“O Victor nunca esteve
completamente consciente do seu valor simbólico. Não tem noção de que significou
a mudança”, deduz Ondina. A imagem que fica desta sua biografia é de um homem
incapaz de esconder a sua natureza e de assumir a sua vulnerabilidade. A de
alguém que não se quis reduzir a nenhuma ideologia que não aquela plasmada na sua
provocante incoerência. Que encontrou no rock “uma família adotiva”, concorda a
autora, “uma maneira de conquistar algum exibicionismo social e de fazer frente
ao que achava injusto”, num género espúrio, de natureza híbrida, capaz de abalar
hierarquias e de pôr em andamento processos de emancipação e participação face
aos quais permaneceu muitas vezes ignaro. “Ele é muito contraditório
politicamente, revolucionário numas coisas, conservador noutras”, resume
Ondina. “Talvez se possa dizer, até, que viveu o rock mais do que o cantou.
Ainda que profundamente ambíguo é um elogio que se lhe pode fazer. Neste país
em que a história vai com o vento, em que a tendência é a da regressão cultural
e que o desinteresse e o desafeto parecem epidémicos, quis salvaguardar as
estórias do Victor, mesmo se ele não gosta de perder tempo a pensar nas coisas,
se a ideia que deixa é a de alguém forte mas teimoso, a caminhar pelo mundo
como uma imparável força da natureza, sempre a avançar, só coração.” Um coração
independente.
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