No
seu “Schubert’s Winter Journey: Anatomy of an Obsession”, acabado de publicar, Ian
Bostridge fala acerca do pavor que lhe inspirava ‘Boa Noite’, o gesto inaugural
deste ciclo: “Ficava enormemente aliviado assim que terminava. Dada a minha
inexperiência, ou porque me sentia menos comprometido com o tema do que o que
devia ou por desconfiar da visão do compositor, tinha receio de me aborrecer.
Afinal, em “Winterreise”, não há canção mais longa do que essa”. Goerne pediria
permissão para discordar. Nesta sua leitura, de modo invulgar, tal honra cabe a
‘A Estalagem’, o eufemístico cemitério cujas portas permanecem fechadas ao
viandante, ao qual nenhuma redenção ou qualquer lenitivo se concederá, nem
mesmo o que vem com a morte. Dir-se-ia uma forma de sustentar a inelutabilidade
do destino deste protagonista, fadado a errar num purgatório coberto de neve,
uma arca frigorífica para a alma. Pontuada pelo absurdo existencial, sugerindo,
até, que Schubert não era inteiramente ignaro do humor negro, e com episódios de
profunda alienação, não surpreende que Beckett tenha sentido arrepios na
espinha ao ouvir “Viagem de Inverno”. Mas tal invocação servirá sobretudo para
sublinhar a resistência contemporânea a um modelo interpretativo absoluto. Ilustra-o
o número deste mês da “Gramophone”, com Bostridge a receitá-la como tratamento
de choque, Mark Padmore a frisar os seus aspetos mais impassíveis, Gerald
Finley e Christoph Prégardien a descreverem-na como o hino de um sobrevivente
ou, em posição diametralmente oposta, Jonas Kaufmann a tomá-la pelo último
estertor verbal de um suicida, possivelmente cifrado no crocitar de um corvo. Goerne,
que aprendeu com Fischer-Dieskau, parece saber que, contra todas as evidências,
nem sempre é preciso que uma coisa termine para que outra comece.
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