Tem
ditado a convenção que se trate este material de modo antológico, tal a
simpatia que os nomes de Argerich e Abbado granjeiam. Mas a verdade é que apreciá-lo
é sobretudo ser complacente com uma insipidez presente logo na mais antiga das suas
colaborações, de 1967, quando com a Filarmónica de Berlim gravaram o “Concerto
para Piano Nº 1”, de Prokofiev, e o “Concerto para Piano em Sol maior”, de
Ravel. Aliás, basta ouvir o Andante na
obra do russo para se identificar uma orquestra em transe; no “Tema e Variações”
a solista toca como quem experimenta peças de roupa antes de comparecer numa
gala e o caráter romântico, rapsódico e desarrumado do andamento espevita-lhe a
companhia; já no Allegro ma non troppo
lá está o italiano de novo a tomar as rédeas com receio que a argentina parta
desgovernada rumo ao horizonte. Dir-se-iam ecos de uma natureza um tanto
volátil que ganha digna representação no Allegramente
do concerto de Ravel, em que as cordas e os sopros já não trabalham por turnos.
Mas não deixa de ser uma versão despossuída de maravilhamento, esta, com
dinâmicas quase incómodas se comparadas com as de Larrocha/Foster ou
François/Cluytens; por exemplo, quando no Adagio
assai se dá a entrada da orquestra espera-se que seja como o sol nascente a
despertar uma cidade, mas, aqui, é a insensibilidade a desarmar o ouvinte. Em
1984, com a Sinfónica de Londres, Abbado e Argerich regressariam a este
concerto, ficando tudo mais vibrante e colorido, como se no centro das
capacidades intelectuais do maestro novas áreas se acendessem, mas a pianista
permanece desinvestida, um adulto que resiste a abrir a mão para mostrar à
criança o doce que lhe comprou. Mais generosa está no Allegro maestoso do “Concerto para Piano nº 1”, de Chopin, apesar
de Abbado situar a ação em Viena em vez de Varsóvia, com Rubinstein às voltas
no caixão; no Romance está no domínio
dos laníferos noturnos e, não atingindo o postulado por Gulda/Boult, concede ao
Rondó atributos orgíacos. No “Concerto para Piano Nº 1”, de Liszt, embora soe a
conversa fiada de um virtuoso para o outro, e no “Concerto para Piano Nº 1”, de
Tchaikovsky, longe do universo de massa folhada de Horowitz/Toscanini, está
dominante. Por fim, de 2000, 2004 e 2013, esta última meses antes do
falecimento de Abbado, no apogeu daquilo que eufemisticamente se poderia
apelidar de fase de oracular serenidade do maestro, em que se pensa que o mal
do mundo se espanta com um copo de água com açúcar, chegam visões invertebradas
de concertos de Beethoven e Mozart. Também homeopáticos estavam Argerich e
Barenboim neste recital de abril de 2014 numa Berlim a braços com a peste
bubónica, a avaliar pelos sintomas na plateia, até que com uma inesquecível versão
a quatro-mãos da “Sagração da Primavera” acabaram com o inverno dos tempos.
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