Delas ausente há mais de uma década, o regresso de Kyung Wha
Chung a salas britânicas possuía no calendário a força gravitacional de um dos
factos do ano. Dir-se-ia, até, que desse modo se restabeleceria uma intimidade
antiga, só interrompida pela doença e através dos seus silêncios prenhe em
carga poética. Era um encontro com a saudade o que se agendava. Por isso,
jamais esperaria a sul-coreana que do seu recital de 2 de dezembro passado se viesse
a falar por intermédio de um fait divers.
É que, entre peças, ignorando que a simples presença de uma criança entre milhares
de adultos é hoje razão para se subordinar um evento aos mandamentos da
pedagogia, Chung cometeu a imprudência de repreender uma família cujo rebento se
acometia de um ataque de tosse, desabafando que mais valia voltarem daí a uns
anos. Ninguém abandonou o recinto e o concerto decorreu na normalidade até ao
seu apoteótico final. Mas um certo jornalismo com níveis de indignação mais
galopantes, à custa do que se considerou um inqualificável ato de censura, levou
a crer que em palco tinham caído o Carmo, a Trindade e a Madonna. Chung foi obrigada
a responder numa carta aberta publicada a 9 de dezembro pelo “The Guardian”: “A
imprensa tem afirmado uma e outra vez que a música clássica está morta. É, por
isso, tão incrível e maravilhoso que um incidente ocorrido num recital de
violino seja capaz de fazer manchetes pelo mundo fora, estimulando animados
debates acerca da conduta quer de músicos quer do público.” Com ironia, apelava
a que não se confundissem honestidade e hipocrisia, decência e desonra,
respeito e desconsideração. Afinal, foi também graças a si que, ao longo dos
anos, promovendo uma espécie de crítica da nacionalidade, se aclararam as águas
na música erudita, melhor se distinguindo tolerância e intransigência, egoísmo
e abnegação, ou mais depressa se detetando onde reside a tirania e no que
consiste a generosidade. Outra coisa não demonstra esta caixa, que efetivamente
se ouve como a canção de alguém que à custa de muitas provações encontrou enfim
um sentido para a vida. Basta que se compare com o que veio posteriormente a
fazer a sua primeira gravação, de 1970 – com o concerto em ré maior, de
Tchaikovsky, e o em ré menor, de Sibelius, ambas com Previn e a LSO –, em que
as impressões digitais deixadas no braço do violino trazem à memória as
hesitantes pegadas de um combatente num campo de minas. Para mais, quando logo
depois – em concertos de Bruch, Walton ou Stravinsky – era já pela sua
confiança e invulnerabilidade que surpreendia. Isto num momento em que as
referências interpretativas (de Kreisler, Ysaÿe, Heifetz,
Milstein, Grumiaux, Ricci ou Oistrakh), não obstante o seu incalculável
valor, procediam de um baú com o bafo da naftalina. Inexcedível em Bartók, Berg
e Elgar (com Solti), em Saint-Saëns e a polir pérolas de Mendelssohn e de
Chausson (com Dutoit), em sonatas de Franck, Debussy (com Lupu) e Richard
Strauss (com Zimerman), por contraste, Kyung Wha lembra os virtuosos que dão
mostras de perceber o tempo como que mergulhados numa depressão: ferinos a cada
segundo e inofensivos a cada hora. Aqui, conta o instante, mas a sua soma
assume o poder do evangelho.
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