7 de março de 2015

Kyung Wha Chung “The Complete Decca Recordings” (Decca, 2014)



Delas ausente há mais de uma década, o regresso de Kyung Wha Chung a salas britânicas possuía no calendário a força gravitacional de um dos factos do ano. Dir-se-ia, até, que desse modo se restabeleceria uma intimidade antiga, só interrompida pela doença e através dos seus silêncios prenhe em carga poética. Era um encontro com a saudade o que se agendava. Por isso, jamais esperaria a sul-coreana que do seu recital de 2 de dezembro passado se viesse a falar por intermédio de um fait divers. É que, entre peças, ignorando que a simples presença de uma criança entre milhares de adultos é hoje razão para se subordinar um evento aos mandamentos da pedagogia, Chung cometeu a imprudência de repreender uma família cujo rebento se acometia de um ataque de tosse, desabafando que mais valia voltarem daí a uns anos. Ninguém abandonou o recinto e o concerto decorreu na normalidade até ao seu apoteótico final. Mas um certo jornalismo com níveis de indignação mais galopantes, à custa do que se considerou um inqualificável ato de censura, levou a crer que em palco tinham caído o Carmo, a Trindade e a Madonna. Chung foi obrigada a responder numa carta aberta publicada a 9 de dezembro pelo “The Guardian”: “A imprensa tem afirmado uma e outra vez que a música clássica está morta. É, por isso, tão incrível e maravilhoso que um incidente ocorrido num recital de violino seja capaz de fazer manchetes pelo mundo fora, estimulando animados debates acerca da conduta quer de músicos quer do público.” Com ironia, apelava a que não se confundissem honestidade e hipocrisia, decência e desonra, respeito e desconsideração. Afinal, foi também graças a si que, ao longo dos anos, promovendo uma espécie de crítica da nacionalidade, se aclararam as águas na música erudita, melhor se distinguindo tolerância e intransigência, egoísmo e abnegação, ou mais depressa se detetando onde reside a tirania e no que consiste a generosidade. Outra coisa não demonstra esta caixa, que efetivamente se ouve como a canção de alguém que à custa de muitas provações encontrou enfim um sentido para a vida. Basta que se compare com o que veio posteriormente a fazer a sua primeira gravação, de 1970 – com o concerto em ré maior, de Tchaikovsky, e o em ré menor, de Sibelius, ambas com Previn e a LSO –, em que as impressões digitais deixadas no braço do violino trazem à memória as hesitantes pegadas de um combatente num campo de minas. Para mais, quando logo depois – em concertos de Bruch, Walton ou Stravinsky – era já pela sua confiança e invulnerabilidade que surpreendia. Isto num momento em que as referências interpretativas (de Kreisler, Ysaÿe, Heifetz, Milstein, Grumiaux, Ricci ou Oistrakh), não obstante o seu incalculável valor, procediam de um baú com o bafo da naftalina. Inexcedível em Bartók, Berg e Elgar (com Solti), em Saint-Saëns e a polir pérolas de Mendelssohn e de Chausson (com Dutoit), em sonatas de Franck, Debussy (com Lupu) e Richard Strauss (com Zimerman), por contraste, Kyung Wha lembra os virtuosos que dão mostras de perceber o tempo como que mergulhados numa depressão: ferinos a cada segundo e inofensivos a cada hora. Aqui, conta o instante, mas a sua soma assume o poder do evangelho.

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