Keith Jarrett (p),
Rundfunk-Sinfonieorchester Saarbrücken, Dennis Russell Davies (d), New Japan
Philharmonic Orchestra, Kazuyoshi Akiyama (d)
Keith Jarrett acumula gravações
como outras pessoas amontoam tupperwares.
E ocasionalmente dá para imaginá-lo a vasculhar por uma espécie de armário de
cozinha mental, contemplar o que noutro universo resultaria numa sucessão de falhanços
geométricos ao tetris e só então considerar
o recipiente certo. Não é tarefa fácil. É que, de acordo com um dos mitos que o
cercam, trata-se de alguém que tem vindo a registar obsessivamente os seus concertos
ao longo dos anos. Além disso, agora, o que se pretendia conservar não era nada
mais, nada menos, do que a relevância simbólica que impreterivelmente se
atribui a um septuagésimo aniversário: assinalou-se ontem e, em concomitância, não
foi há mais de 24 horas que a ECM oficialmente lançou estes dois discos. Talvez
por essa razão tenha o pianista esquadrinhado o arquivo caseiro em busca de
matéria que o representasse mais amplamente: “Creation” colige nove temas com
origem em seis recitais de 2014 (um em Toronto e em Paris, outro em Roma, três
em Tóquio), o “Concerto para Piano, Op. 38”, de Samuel Barber, vem de uma
atuação na Sala de Congressos de Saarbrücken, na Alemanha, a 3 de junho de
1984, e o “Concerto para Piano Nº 3 em Mi maior”, de Béla Bartók, procede de
uma apresentação a 30 de janeiro de 1985 no festival Tokyo Music Joy, no Japão.
Mas não era preciso tamanha
introdução para se perceber que Jarrett encontrou, de facto, qualquer coisa de
especial nos objetos que reuniu no CD a solo. Aliás, dele, que já fez birras
por menos, dir-se-ia nem notar que, logo ao primeiro tema (‘Part I’), a plateia
o vai acompanhando à velocidade de uma tossidela por minuto. Também a música
progride em intervalos com relações curiosas, mas não é nada de que normalmente
não se acerque qualquer pianista a improvisar a partir dos românticos. ‘Part
II’ recorre àquele Bach que, ainda que de modo espúrio, um dia se pôs ao cravo com
as insónias do conde de Keyserlingk em mente e adequa-se aos mediúnicos gemidos
com que Jarrett a comenta, embora, de forma irónica, o efeito traga antes à
memória a voz de um homem de consciência pesada que fala a dormir. ‘Part III’ é
uma balada criada com sequências de acordes sacados à secção de usados do Tin
Pan Alley. Por sua vez, ‘Part IV’ pega na “Milonga para Tres”, de Piazzolla, e
leva-a a visitar a campa de Ravel. E assim continuamente, pilhando-se materiais
de construção, de estaleiro em estaleiro, sem que ninguém lhes dê pela falta. Aqui
raramente se entrega o seu a seu dono. Mas não é a ausência de originalidade que
se lamenta e, sim, o facto de até isso dar mostras de ser perfeitamente insincero.
Da mesma maneira, não é o ecletismo, em si, que frustra, mas o permanente descomprometimento
com qualquer idioma específico que à sua custa se alimenta. Coisa que, por
sinal, mal se notava há 30 anos atrás, quando Jarrett gravou estes dois
concertos para piano, colocando um compositor norte-americano e outro húngaro a
falar a mesma língua, o que, no caso, não deixa de ser um elogio para todos os
envolvidos. Mas o retrato é essencialmente pessimista, habitado pela neurose e pelo
ridículo, o que agradará a quem receasse vir a achá-lo pretensioso demais. Afinal
sempre há um Jarrett para todos.
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