Em
meados da década de 90, por alturas da revisão da biografia que consagrou a Alexander
Scriabin (1872-1915), originalmente publicada em 1969, o norte-americano
Faubion Bowers, em prefácio, dava conta do “muito que se tinha entretanto
passado no mundo da Scriabiniana”. Lembrava, por exemplo, que, em 1972, no ano
do centenário do nascimento do compositor, os correios da URSS tinham emitido um
selo de 4 copeques alusivo à efeméride. Ou que, pela mesma ocasião, Margarita
Fyodorova, docente no Conservatório de Moscovo, havia apresentado a totalidade
da sua obra para piano em cinco concorridos recitais. Aliás, como um sintoma
dessa crescente popularidade, e indo direto ao que interessava, também
Sviatoslav Richter propunha, então, pelo mundo inteiro, programas de concerto monopolizados
por Scriabin, que considerava uma “droga poética”. Enquanto nos EUA, e de há
muito, era Vladimir Horowitz, entre outras coisas dizendo que “Scriabin
antecipou o átomo”, a liderar a reconsideração do seu fabuloso legado junto da
opinião pública. Na Europa, notabilizava-se Vladimir Ashkenazy ao interpretar as
suas dez sonatas e dirigir as suas cinco peças sinfónicas.
Curiosamente,
nessa introdução, embora concluísse que “Scriabin estava na moda”, Bowers
omitia ilustres contemporâneos como Ruth Laredo, Michael Ponti, John Ogdon ou
Roberto Szidon, cada qual com contribuições decisivas para o cânone. Mas, se
tivesse vivido até hoje, para lembrar uma mão cheia de nomes, teria de
acrescentar à lista o que de modo subsequente vieram a fazer Gordon
Fergus-Thompson, Piers Lane, Grigory Sokolov, Maria Lettberg ou Artur Pizarro.
Pois a verdade é que Scriabin nunca esteve tão vivo quanto nos últimos vinte
anos. Até o megalómano “Mysterium”, que pressupunha a precoce multimediatização
de um conjunto de técnicas que, muito mais tarde, só Jean-Michel Jarre terá chegado
a dominar, e para o qual não havia deixado mais do que um esboço concetual e um
estudo preparativo inchadíssimos pela papeira do esoterismo, viu apocrifamente a
luz do dia à custa da dedicação de Alexander Nemtin. Apesar de tudo isto, e
porque Scriabin possui, de facto, uma sede volátil no pensamento ocidental, não
surpreende que, como duas crianças que tentam a todo o custo finalizar uma
caderneta de cromos, e de maneira a garantir esta inédita integral, tenha a Decca
trancado em estúdio Ashkenazy e Valentina Lisitsa em novembro e dezembro
passados. Ou seja, além da apregoada visita aos arquivos, esta antologia reúne,
também, cerca de 60 novas gravações exclusivamente realizadas para o efeito.
Neste
particular, esclareça-se que, hoje, à semelhança de outras empreitadas
recentes, vasculhar no baú patrimonial em nome da Decca significa aceder ao
conjunto de matrizes na posse do grupo Universal, o que tanto pode testar a
capacidade de invenção dos seus organizadores quanto a de compreensão dos
ouvintes que os seguem. Isto porque, ao nível da receção, dir-se-ia que estas
escolhas são sempre feitas em prejuízo de alguma coisa. Atente-se ao CD 6, que
ilustra perfeitamente esta tendência: por Lisitsa, acabados de registar e a
roçar a bipolaridade, temos o “Poème satanique, op. 36”, o “Poème, op. 41”, o
“Scherzo, op. 46” e o primeiro dos “3 Morceaux, op. 49”; por sua vez, das mãos enxutas
de Ashkenazy saem frescos os “8 Études, op. 42”, os “3 Morceaux, op. 45”, a
“Quasi-valse, op. 47” ou os “3 Morceaux, op. 52”, além de que de 1987 chegam requentados
os “4 Morceaux, op. 51”; já os “4 Préludes, op. 37”, os “4 Préludes, op. 39”,
as “2 Mazurcas, op. 40”, os “4 Préludes, op. 48” e o segundo dos “3 Morceaux,
op. 49” são extraídos às equilibradas sessões de 1999 e 2000 de Fergus-Thompson
para a ASV; depois, há a “Valse, op 38”, retirada ao CD de 2014 de Benjamin
Grosvenor, os “2 Poèmes, op. 44”, por Jean Louis Steuerman, captados em 1988, o
terceiro dos “3 Morceaux, op. 49”, de 2002, por Anna Gourari e, por fim, de 1962,
por Richter, com o selo da Deutsche Grammophon e sem um grama de bolor, a
“Sonata Nº 5, op. 53”. É fácil perder-se o fio à meada.
Não
obstante, não há aqui tanto material da DG quanto seria de prever, além de uns pozinhos
mágicos de Ivo Pogorelich na “Sonata Nº 2, op. 19” e do manto de crude
derramado por Pierre-Laurent Aimard na “Sonata Nº 9 (Missa Negra), op. 68”. Pouco
se aproveitou de Szidon e Yevgeny Kissin na obra pianística, enquanto na restante,
talvez por fidelidade a Ashkenazy, se dispensou por completo o que fizeram
Pierre Boulez e Anatol Ugorski, nomeadamente no “Concerto para Piano, op. 20”,
com a Sinfónica de Chicago, Mikhail Pletnev com a Nacional Russa ou Giuseppe
Sinopoli com a Filarmónica de Nova Iorque. Seja como for, como escreveu Leonid Sabaneyev, as cinco peças para orquestra de
Scriabin parecem de um “falso sinfonista” ou, no limite, são o resultado de “uma
pseudoorquestração de ideias muito pouco sinfónicas”. É pelas bordas de mazurcas,
prelúdios e sonatas, erodindo e erotizando formas, que Scriabin deixou matéria
suficiente para ir daqui até à eternidade.
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