Aos
73 anos, o trompetista e compositor norte-americano Wadada Leo Smith é um dos
mais distintos conceptualistas do jazz contemporâneo e uma figura incontornável
na sua história recente. Tocou em conjuntos de R&B, militou na AACM, gravou
com luminárias da sua geração, estudou músicas de África e do Médio e Extremo
Oriente e dedicou-se desde muito cedo ao ensino, de certa forma condicionando a
efetiva documentação da sua produção artística e limitando a notoriedade que
tal habitualmente acarreta. Ainda assim, destacam-se na sua discografia inicial
títulos como “Reflectativity”, “Divine Love”, “Spirit Catcher”, “Go in Numbers”
ou “Human Rights”. Desde 2000, no entanto, ano em que fundou o Golden Quartet,
tem vindo a assumir uma posição de maior proeminência, editando o seminal “Ten
Freedom Summers” em 2012, a que se seguiram uns não menos magistrais “Occupy
the World” e “The Great Lakes Suites”. Contando a seu lado com Henry
Threadgill, John Lindberg e Marcus Gilmore, é este que o leva hoje ao festival
Jazz em Agosto, em Lisboa. E foi essa a razão para uma longa conversa
telefónica, num momento em que, após cerca de duas décadas a exercer funções no
prestigiado Instituto das Artes da Califórnia, o ‘CalArts’, o professor Smith
acaba de se reformar.
Como vai a vida de reformado?
Bem,
se quer que lhe diga sinto-me como se tivesse chegado ao fim do arco-íris.
Quero dizer, enquanto durou, a experiência do ensino foi boa. Mas a verdade é
que a minha vida tem sido muito melhor desde que me aposentei.
Em conversa com músicos afetos à
improvisação, e com um longo historial de dedicação à docência, fiquei sempre
com a impressão de que, na academia, se valorizava mais a sua tendência natural
para fazer perguntas do que propriamente a sua capacidade de fornecer
respostas. Era também o seu caso?
Bom,
é verdade que desenvolvi metodologias muito próprias ao longo destes anos. Algumas
delas interdisciplinares. Mas nunca me agarrei a um conjunto de pressupostos
fixos. Nem mesmo, como reconheço ser frequente, a esse tipo de método, assim…
Algo socrático?
Sim.
Dava-se mais o caso de eu avaliar um aluno ou uma aluna para averiguar ao certo
aquilo de que mais necessitavam. Podia fazer-lhes sugestões e permitia que as
assimilassem à sua maneira. Se dessem com algum problema, então, aí,
levantava-se a questão de como solucioná-lo. Portanto o meu papel era mais o de
equipá-los com ferramentas essenciais à resolução de problemas. Isto, porque
criar arte é também saber tomar uma série de decisões de múltiplo alcance a
cada momento, para cada momento. Quem não tiver habilidade para isso não chegará
a ser artista, parece-me.
A propósito, há algum tempo que colegas
seus falam da improvisação como um modelo para a resolução de conflitos. O que
acha da ideia?
Eu
sei que muito se tem escrito nesse sentido. Mas não me parece que assim seja, nem
considero que as escolhas que estão na base dessa afirmação surjam imbuídas de princípios
espirituais. Na música, o verdadeiro ato de improvisar não tem nada a ver com o
que normalmente se apelida de improvisação livre ou improvisação não-idiomática
ou o que lhe quiserem chamar. Isso são muros que as pessoas erguem para
satisfazer o seu ego e o seu próprio sentido de nacionalidade.
São uma prisão com outra qualquer?
Talvez,
na medida em que não transcendem o seu condicionamento. Embora conceda que ao
analisar tecnicamente solos de Charlie Parker, Miles Davis, Booker Little, John
Coltrane ou Albert Ayler se possa falar em resolução de conflito. Mas, repito,
nada disso tem a ver com essa conversa da ‘Improvisação Livre’ com letra
grande, como um chapéu em que tudo cabe por baixo. Na arte, o mais importante é
a criatividade, não o método. Isso, sim, é o grande aglutinador. Ao compor,
improvisar, dançar ou ao esculpir um pedaço de madeira, é a criatividade que
cola umas coisas às outras. Falar de outra forma, com ênfase na metodologia, reflete
más escolhas. Esses músicos que se apresentam exclusivamente como
‘improvisadores’ puseram-se entre a espada e a parede. E terão de ficar aí para
sempre, a desperdiçar uma vida inteira por não conseguirem sair do buraco em
que se enfiaram.
Lembro-me de ouvi-lo falar precocemente em
organizar sons como eles se organizam na natureza. Acho que isso está naquele
documentário alemão de 1971…
O “See the Music” [de Theodor Kotulla]. Referia-me à
condição de sermos como uma ideia, como o fruto de uma inspiração. E de nos
deixarmos afetar pela passagem do tempo. Ou melhor, de termos essa experiência
mais ontológica de um tempo que pode partir do agora e atingir o infinito, se
quiser. Mas como não está ao nosso alcance retê-lo na sua totalidade vamos
descobrindo-o aos poucos, como quem vai desvendando um a um os mistérios da
criação. E, aí, partilhamos dessa inspiração que lhe esteve na origem, ainda
que à nossa volta tudo esteja em mudança permanente. E isso permite-nos
transcrever essa inspiração para algo de vivo, orgânico, fluído, por sua vez também
em constante transformação.
Diria que o Golden Quartet expressa essa
sua intuição?
Sim.
Foi para isso que o criei: para servir de veículo a uma música pura que estava
já formada em espírito antes ainda que nos propuséssemos a tocá-la. Escolho
trabalhar com músicos que partilhem dessa predisposição. E no “The Great Lakes
Suites” dá-se o mesmo. Algo que se disponibiliza a ser tocado por essa vontade
divina. Também os planetas que se movem pelo espaço têm as suas rotas definidas
e também elas se alteram. Como o sol, ou melhor, como a nossa consciência de
tudo o que muda desde que o sol nasce até ao momento em que se põe.
Recordo-me de ouvir pela primeira vez
‘Divine Love’. Quando a flauta do Dwight Andrews reintroduz o motivo melódico
inicial, no fim da peça, senti que tinha assistido ao nascer do sol e que estava
agora a ver o sol a pôr-se mas que pelo meio a minha vida se tinha transformado.
É
uma bela descrição. Principalmente porque, de facto, a melodia que o Dwight
toca nunca fica resolvida. Quando o trompete com surdina entra, quase aos 20
minutos, já está num tom diferente, alterando as relações anteriores. Parece
que estamos a ouvir a mesma coisa mas o contexto transformou-se.
Foi uma impressão minha na altura, mas,
com o passar dos anos, e quanto mais a ouvia, comecei a sentir que a sua música
na realidade não tinha princípio nem fim. Que tudo se passava mais em simultâneo
do que de modo assíncrono.
Está
correto nessa dedução. Na minha música tudo se desenvolve simultaneamente numa
direção e na outra, e depois na outra e ainda na outra. É a ideia do quarteto. Dos
elementos, das verdades nobres, dos estágios da vida, das estações, das
coordenadas, dos livros do Islão. Independentemente da sua fundação cultural, o
número quatro surge no budismo, no hinduísmo, na simbologia judeo-cristã e
islâmica, enfim, em qualquer sistema, de maneira continuamente multidirecional.
Estão, portanto, errados os que repetem que
esta urgência na sua produção [cerca de 20 álbuns desde o ano 2000] prova que
tem andado à procura do tempo perdido?
Completamente,
pois cada passo foi necessário para chegar onde cheguei. Dou-lhe um exemplo:
quando me mudei para o Connecticut, em 1970, fiquei praticamente sem tocar ao
vivo. Não entrei em digressões e pouco gravei, isto durante quase duas décadas.
Mas usei esse tempo para estudar, para pesquisar, para descobrir. E o que
ganhei nesse período foi-me útil até hoje. Não me arrependo de nada. Segui um
caminho que me proporcionou experiências de aprendizagem fundamentais. E que
possibilitou que no meu íntimo despertasse a possibilidade de viver o maior dos
amores.
Mas em algum momento teve
dificuldades em comunicar os seus sentimentos e o seu pensamento?
Sempre.
A viagem é isso mesmo. Mas poderia também dizer que foram as dificuldades de
outrora que me permitem agora enxergar as coisas com mais nitidez. Aonde quer
que vá ainda me sinto como um miúdo do Mississípi. Mas as dificuldades que
enfrentei são as mesmas que outras pessoas encaram noutros pontos do globo. Aliás,
só a ganância dos políticos justifica que se continue a dividir o mundo em nações.
Nada disso é uma vantagem para a humanidade mas é usado em benefício próprio
por aqueles que exercem o seu poder atuando contra os nossos interesses. Ainda
creio que o mundo é meu. E que o meu lar, como dizia Bob Marley, está onde
estiver o meu pensamento e o meu coração.
Há um ditado que diz que passamos pela
vida à procura da estória no nosso coração.
E
eu posso afirmar que encontrei o caminho. A vida é uma luta, e é assim que deve
ser. E não há intenções claras na vida, e é também assim que deve ser. Estamos
num ponto intermédio face à dimensão a que aspiramos. Uma que não tenha tanta
dor, tanto sofrimento, tanto conflito. Seja como for, uma coisa é certa: o
paraíso não é isto. Podia ser, mas também não iria durar.
Assim de repente, alguma vez compôs por
receio ou por rancor?
Nunca.
Não foi por terem arrancado à força os meus antepassados de África que me vou
sentir motivado a odiar. Olho para os descendentes desses europeus e não os
odeio porque, no fundo, em nada os receio. Tomei decisões de modo a poder viver
uma vida desprovida de ódio, medo ou inveja. Sofro, mas compreendo melhor o meu
sofrimento do que uma pessoa que se deixa dominar pela raiva ou pela
necessidade de vingança. Para esses, mais não sobra do que uma vida de miséria.
E, no entanto, não se pode dizer que a
sua não seja uma música de ação.
Claro.
Aliás, toda a música deve conduzir à ação. Até porque a música é a arte que
mais se assemelha à nossa vida. Já o dizia Kandinsky nos seus escritos acerca
da espiritualidade. Já viu bem o papel que a música desempenha na vida das
pessoas? Porque não obrigar os nossos governos a tomar nota disso?
Como? Não diria que a nossa relação com
os nossos representantes já tem falhas suficientes?
Tem.
Mas essas falhas são criadas por nós, porque pensamos enquanto indivíduos e nos
achamos muito espertos por isso. Temos de repensar os nossos sistemas
políticos, os nossos sistemas de saúde, económicos, etc., e adaptá-los para que
representem mais o coletivo do que o indivíduo. Porque a nossa cultura é global
e a comunidade internacional é uma só. Ignoramo-lo e permitimos estes
constantes atentados à liberdade. E falo da liberdade real, não destas
democracias cada vez mais insidiosas. Não há democracia no mundo. Engana-se
quem pense o contrário. Nunca houve, nem sei se algum dia chegará a haver. O
que temos é o exercício do poder por um bando de malfeitores. Isso e uma comunidade
de escravos constituída por todos nós. Por isso, o progresso só é possível de
modo radical. Temos de aceitar que o sistema está comprometido, e desligá-lo.
Senão só nos resta um quotidiano de violência. Como o atual abuso das forças
policiais norte-americanas, organizada, patrocinada e deliberadamente empregue para
subjugar a comunidade afro-americana. É uma questão de direitos humanos.
Foram preocupações dessas que o levaram
a gravar “Occupy the World”?
Claro. Temos de ser nós a impor um novo modelo de
governação mundial baseado na etnicidade. Não vão ser os nossos governos
corruptos a fazê-lo por nós. Temos de pensar num sistema coletivo que
represente toda a diversidade do mundo. E as resoluções têm de ser baseadas em
consensos. Agora, nada disto pode ser feito de forma gradual. Tem de ser de uma
só vez, como quando nos apaixonamos. O impulso de transformar a sociedade tem de
corresponder ao que sentimos quando amamos alguém instantaneamente, completamente,
incondicionalmente. Wadada quer dizer amor, sabe?
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