15 de agosto de 2015

La Reverdie “Venecie Mundi Splendor” (Arcana, 2015)



Incoercível, a advertência de Grocheio em “Ars musicae” (c. 1300) inaugurou um ilustre mandato para o moteto, desviando-o da “plebe” e intimando-o à presença de “gente letrada”, mais precisamente daqueles que se supunham capazes de “apreciar a arte subtil”. Isto em França. Já em Veneza, soubesse o teórico alguma coisa acerca da vileza envernizada dos doges, há que convir que o melhor seria mesmo não se deixar grande margem à imaginação. O que quer dizer que, em termos hermenêuticos, Claudia Caffagni teve a vida facilitada. Há aqui um “Ave corpus sanctum gloriosi Stefani”, atribuído a Marchetus de Padua, em que se invoca o martírio de Santo Estêvão (o “nome do primeiro sangue derramado”) para, enfim, rogar “Vem até nós ó Santo, abençoado protetor de Francesco, atual doge dos venezianos”. Depois, surge um curioso “Marce Marcum imitaris”, de autor anónimo, que faz a vénia a Marcos Evangelista (“Ó Marco, tu imitas Marcos no esplendor da honestidade”) apenas para prestar vassalagem àquele que, então, consignava “o nobre ducado à prole dos Cornaro”. Dívida que também Antonius Romanus reconhece em “Stirps Mocinico” face à “estirpe veneziana dos Mocenigo”, enquanto pede a S. Marcos que recomende “Tommaso a Deus, nosso Senhor”. Mais explícito ainda, com “Christus vincit”, Hugo de Lantins dobra o joelho perante Francesco Foscari, “ínclito doge de Veneza, Dalmácia e Croácia” e “soberano de um quarto e meio do Império Romano”. Ou seja, está tudo ali ao pé da letra: Francesco Dandolo, Marco Cornaro, Tommaso Mocenigo, Francesco Foscari em laudas prontas a fazer inchar em proporções basilicais o ego de um século de doges. Ouvindo-as, dir-se-ia que o La Reverdie não se constrangeu por tamanha literalidade. Ao invés, propõe esta levíssima reconsideração de uma música de que quase nada se sabia, situada entre 1330 e 1430, deixando pesar-lhe pouco mais que “a sugestão de melancolia”, como escreveu Jan Morris em “Veneza”. Porque, apesar de se dar na gravação pelo catarro desses varões perdidos entre brejos, brumas, bolores e bronquites várias, a verdade é que as Caffagni e Elisabetta de Mircovich cantam como se lhes fosse faltando o chão sob os pés. Em Veneza, nada mais apropriado.

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