Incoercível, a advertência de
Grocheio em “Ars musicae” (c. 1300) inaugurou um ilustre mandato para o moteto,
desviando-o da “plebe” e intimando-o à presença de “gente letrada”, mais
precisamente daqueles que se supunham capazes de “apreciar a arte subtil”. Isto
em França. Já em Veneza, soubesse o teórico alguma coisa acerca da vileza
envernizada dos doges, há que convir que o melhor seria mesmo não se deixar grande
margem à imaginação. O que quer dizer que, em termos hermenêuticos, Claudia
Caffagni teve a vida facilitada. Há aqui um “Ave corpus sanctum gloriosi
Stefani”, atribuído a Marchetus de Padua, em que se invoca o martírio de Santo
Estêvão (o “nome do primeiro sangue derramado”) para, enfim, rogar “Vem até nós
ó Santo, abençoado protetor de Francesco, atual doge dos venezianos”. Depois,
surge um curioso “Marce Marcum imitaris”, de autor anónimo, que faz a vénia a
Marcos Evangelista (“Ó Marco, tu imitas Marcos no esplendor da honestidade”)
apenas para prestar vassalagem àquele que, então, consignava “o nobre ducado à
prole dos Cornaro”. Dívida que também Antonius Romanus reconhece em “Stirps
Mocinico” face à “estirpe veneziana dos Mocenigo”, enquanto pede a S. Marcos
que recomende “Tommaso a Deus, nosso Senhor”. Mais explícito ainda, com
“Christus vincit”, Hugo de Lantins dobra o joelho perante Francesco Foscari,
“ínclito doge de Veneza, Dalmácia e Croácia” e “soberano de um quarto e meio do
Império Romano”. Ou seja, está tudo ali ao pé da letra: Francesco Dandolo,
Marco Cornaro, Tommaso Mocenigo, Francesco Foscari em laudas prontas a fazer inchar
em proporções basilicais o ego de um século de doges. Ouvindo-as, dir-se-ia que
o La Reverdie não se constrangeu por tamanha literalidade. Ao invés, propõe esta
levíssima reconsideração de uma música de que quase nada se sabia, situada entre
1330 e 1430, deixando pesar-lhe pouco mais que “a sugestão de melancolia”, como
escreveu Jan Morris em “Veneza”. Porque, apesar de se dar na gravação pelo
catarro desses varões perdidos entre brejos, brumas, bolores e bronquites
várias, a verdade é que as Caffagni e Elisabetta de Mircovich cantam como se
lhes fosse faltando o chão sob os pés. Em Veneza, nada mais apropriado.
Sem comentários:
Enviar um comentário