Parece
que o assunto é cabelo. Ou, melhor, que a sua falta é a raiz do problema. E, no
Brasil, país em que se conjuga o escândalo como um verbo, insuspeitas
publicações como a Folha de S. Paulo ou o Globo vieram a público pedir explicações:
“Cortei meu cabelo, me arrependi e aí resolvi botar esse aplique”, esclarecia
Gal Costa por ocasião do lançamento de “Estratosférica”. É uma matéria
importante. Como aquela canção que um dia Caetano Veloso escreveu a partir de
um desencontro com o litoral de Gal, que ela cantou em “Índia” (1973) e na qual
ele concluía que “uma mulher é sempre uma mulher etc. e tal”, é até mesmo “da
maior importância”. Afinal, a partir de palavras de Gilberto Gil – que,
recorde-se, a par de Caetano, teve a carapinha rapada na prisão por militares
entendidos na lenda de Sansão –, já Gal assim dizia no seu segundo LP de 1969:
“Cultura e civilização/ Somente me interessam/ Contanto que me deixem meu
cabelo belo/ Meu cabelo belo/ Como a juba de um leão”. Ela que, muitos anos
depois, em “Plural” (1990), via Jorge Ben e Arnaldo Antunes, viria a sugerir que
“Cabelo vem lá de dentro/ Cabelo é como pensamento”. Tudo isto para lembrar que
em Gal nada é acessório. E que, ao longo de cinco décadas de uma carreira
ímpar, raras foram as vezes em que não enjeitou a engendração de próteses
memorialistas. No seu melhor, “Estratosférica” vem confirmá-lo.
Gal
tem afirmado que este seu novo álbum, e “tudo o que tem feito ultimamente, começando
por ‘Recanto’, é rutura, vanguarda”. Mas também tem dito que a ideia, agora, era
“fazer um disco fresco, jovial, palatável”. À medida dessa ambição tirou umas delirantes
fotografias em que, 30 anos depois de “Profana” (1984), torna a representar uma
gueixa ou a moda cabúqui. Ela, que há muito mais que isso vem personificando a
‘Musa Cabocla’, de Waly Salomão: “Mãe matriz da fogosa palavra cantada/ Geratriz da canção
popular desvairada”. Mas, precisamente com as canções que Caetano para si
escreveu em “Recanto”, logo após ter feito justiça a um antigo e premonitório
verso de António Cícero – “Sou de carne e osso e eletrónica” – seria inevitável
esperar-se por mais. É o que se lê no poema de ‘Sem Medo Nem Esperança’, outra
vez de Cícero, com que “Estratosférica” abre: “Nada do que fiz/ Por mais feliz/
Está à altura/ Do que há por fazer”. Mas, aqui, são poucas as ocasiões em que os
compositores ao seu serviço se desembaraçam de arquétipos e se provam à altura
do que aqueloutra canção de “Profana” postulava: “Passado-futuro-presente/ Fundido
e confundido na minha mente”. Também os arranjos de Kassin possuem menor
capacidade de síntese face aos do registo anterior. Destacam-se ‘Por Baixo’
(Tom Zé convocando o lúdico e o lúbrico), ‘Anuviar’ (a poética da síncope
segundo Moreno Veloso e Domenico Lancelotti), ‘Dez Anjos’ (libelo de Milton
Nascimento e Criolo) e o derrame de melodistas como Marisa Monte e Marcelo
Camelo. Aí, Gal volta a ser o pacto entre canto e ato, o nexo entre texto e sexo.
A que gritou ‘Meu Nome é Gal’, etc. e tal.
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