Dir-se-ia uma referência inevitável
para quem questiona continuamente os modelos segundo os quais a linguagem se gere,
adquire, organiza, utiliza e expande. E vasculhando pelos discos de Joe McPhee,
de facto, encontra-se uma adesão textual aos princípios que Edward de Bono promulgou
em “O Pensamento Lateral”. Está em “Topology”, um LP de 1981, e o músico ratifica-a
assim: “Digamos que segue para norte numa estrada e dá com um enorme buraco no
chão. Pode construir uma ponte e passar-lhe por cima. Mas pode igualmente dirigir-se
para sul em busca de um desvio. Ou seja, para chegar onde pretende pode ser que
tenha de viajar algum tempo no sentido contrário ao do seu destino. No meu
caso, o problema que tenho de resolver é: como tocar com pessoas com as quais
nunca toquei?” Realmente não se imagina reação mais lateral, mas também mais eloquente,
esclarecida e elegante, contundente, conseguida e contumaz, do que a que tem em
‘Theory of Mind’, um tema de “This is Our Language”: não tocando. Em entrevista
ao jornal “Público”, Rodrigo Amado aludia a esse instante e validava-o deste
modo: “Fiz-lhe sinal em pontos que seriam perfeitos para ele entrar, mas o Joe
estava de olhos fechados, concentrado a ouvir a música, como se estivesse a
tocar connosco.” Isto é, refém do inefável, impondo a modéstia à vaidade, McPhee
não deixa de influenciar o evoluir dos acontecimentos só porque à primeira vista
não os protagoniza. Ou, como disse, um dia, Lennie Tristano: "The hippest thing you can do is not play at all. Just listen." Estendendo-se gradualmente aos seus intervenientes, é uma
atitude que caracteriza a sessão.
O gesto não terá apanhado Amado de
surpresa. Afinal, meses antes desta gravação, o saxofonista português assistiu
ao insólito e inspirado momento em que, num concerto em trio, num sótão ao
Príncipe Real, McPhee poisou no chão as suas madeiras e os seus metais e
simplesmente assobiou. Aliás, este “This is Our Language”, que traz à memória
“This is Our Music”, de Ornette, surge iluminado pelo espírito do free jazz, sim, mas parece em tudo
oposto à conflagração do escândalo que o exicial movimento exigiu. É, antes, jubilante
e judicioso aqui, solene e sereno acolá; e, ao querer instigá-lo, é possível
que Amado tenha ainda intuído algo da teoria da “gramática universal”, de
Chomsky. Porque quem consigo está sabe que, para um instrumentista, a
improvisação tanto pode ser a estilização mais exigente quanto a vocação mais avuncular.
Ouvindo o disco, e prestando atenção a títulos a rondar a pedagogia, percebe-se
que se deixam guiar pelo valor ético que sempre prevaleceu na mágoa e no milagre
da vanguarda. O mesmo se pode dizer de um “Ticonderoga” em que se equaciona a
tensão entre o Coltrane crente e o crível através da invocação de “Live at the
Village Vanguard Again!”. E também aqui não se trata de nostalgia, mas da
partilha de um conjunto de sentimentos que se refletem no gosto com que se
recorre à palavra “irmandade”. Como o CD de Amado, indicia intimidade com a
História para, de seguida, rejeitar qualquer internamento ideológico. E procura
outro destino crítico, inusitado, inaudito, ínvio e indizível.
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