Pedia com instância, em testamento, Afonso X, o
Sábio: “Que todos os livros de cantares de louvor a Santa Maria permaneçam na
mesma igreja onde o nosso corpo for sepultado”. Não foi bem assim, como se
sabe. Nem se pode considerar que a posteridade da sua singularíssima coleção
tenha sido assegurada. Ainda hoje, aliás, não tem muito por onde escolher, quem
ande à cata de uma gravação representativa das Cantigas, esgotados que estão os
títulos que lhes consagraram Schola Cantorum Basiliensis (por sinal, o primeiro
contacto fonográfico de Montserrat Figueras com o repertório), Alla Francesca,
Micrologus, Esther Lamandier, Obsidienne, Sequentia, Ensemble Gilles Binchois
ou Clemencic Consort. Por isso, em boa hora se vê reeditado por Jordi Savall
este emblemático registo, captado em 1993, na Colegiada de Cardona (com a
acústica da sua nave central, de quase vinte metros, a exigir crédito na ficha
técnica), e pouco depois lançado na Astrée.
Com Figueras (e Mercedes Hernández,
por exemplo) na voz e com instrumentistas como Pedro Memelsdorff (Mala Punica),
Robert Crawford Young (Ferrara Ensemble), Andrew Lawrence-King (Harp Consort),
Alfredo Bernardini (Zefiro), Guido Morini (Accordone) e Markus Tapio
(Daedelus), trata-se de um período em estado de graça para a Capella Reial de
Catalunya e para o Hespèrion XX, em que as práticas musicais mais especulativas
se iam tornando realidade, tomo a tomo, e em que o universalismo de Savall se
mostrava francamente flexível e de modo algum contrariado pelos vestígios de provincianismo
que nas suas escolhas se detetavam. Até porque, ao jeito de Afonso X, o maestro
catalão parece saber que o moralismo não implica forçosamente a homogeneização
de diferentes constituintes regionais. Disso mesmo testemunho, esta sua visão do
culto mariano alfonsino, que vai do aulido
paralitúrgico e dos ais devocionais à algazarra épica, fez, e faz, história.
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