De modo inesperado, logo a abrir, este “Gledalec” recorre
a um salmo da altura da contrarreforma: “Mirabile mysterium”, de Jacobus Gallus,
compositor oriundo do ducado Habsburgo de Carníola, na atual Eslovénia, cujo primeiro
volume de motetos foi publicado em 1586 e que, aqui, por intermédio de um
acentuado cromatismo, se diria evocar a tensão subjacente a versículos que assinalam
a unidade das naturezas divina e humana: “O que era permanece, o que não era
assume, sem sofrer mistura ou divisão”. Trata-se de uma escolha eminentemente dramática
– Kaja Draksler, pianista, compositora e improvisadora, a cometer a audácia de
sugerir que na vida se pode ser mais do que uma coisa de cada vez sem se ver
diminuído por nenhuma delas. Sublinha-o sem demoras, ao estender a antífona
renascentista até ‘Births’, um original que adapta “Los nacimientos”, de Pablo
Neruda – uma estrada de areia batida robustecida a asfalto. Está, então, e como
escreveu Hernán Loyola acerca do chileno, dedicada à “história da consciência
humana no seu processo de integração”, isto é, ao estudo “da sua origem, da sua
incorporação no mundo, do seu vínculo com a natureza, com os objetos e com a
cultura”.
Talvez por isso, em declarações reproduzidas na folha de sala que
apresenta o seu concerto de hoje na Culturgest, em Lisboa, venha dizer que não
pensou “em termos de estilos, mas de valores musicais”, que sentiu que “havia
aspectos que faltavam ao jazz e à música clássica (…). E como juntei músicos
que vêm de diferentes origens, destinei-lhes materiais que pudessem iluminar os
seus respetivos talentos”. De facto, no jazz, com uma cantora islandesa e outra
letã, com uma saxofonista argentina, um contrabaixista belga, um violinista
romeno e um par de multi-instrumentistas holandeses, este seu octeto é o mais
internacional desde o de “United Notions”, de Toshiko Akiyoshi. Traz também poemas
de Andriana Minou – num, ouve-se: “Até que o passado deixe de o ser”. Melhor
cartão-de-visita para esta música não há.
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