Todos
sabiam quem ele era e volta e meia viam-no passar de malas aviadas a caminho de
mais um recital. Apequenava-se a entrar e sair dos carros e quando se deixava
fotografar para jornais e revistas e capas de discos parecia um gigante num
quartinho de bonecas, sem saber bem o que fazer de si. Mas agora notava-se-lhe
a roupa de antigamente demasiado larga no corpo. Ainda há coisa de meses,
aliás, quando se preparava para regressar a solo norte-americano, tinha sido
surpreendido por um piquete à porta do Carnegie Hall, em Nova Iorque: “A música
não consegue abafar os gritos das câmaras de gás”; “Não queremos nazis nas
nossas salas de concerto”; “Hitler e Gieseking cantavam a mesma canção”, lia-se.
Numa memória da altura do pós-guerra, o seu genro, Imre Hajmassy, recordava
como a generosidade e a hospitalidade da família Gieseking contrastavam com a
doença e a subnutrição que grassavam no seu lar – daí a importância desta
nomeação para o recém-inaugurado Conservatório de Saarbrücken, no Proteturado de Sarre, na zona de ocupação francesa. Walter
Gieseking seria doravante Senhor Professor. Sorte de um punhado de alunos seus,
claro, mas igualmente da emissora local, que logo tratou de programar um
conjunto de ambiciosas sessões de gravação com o lendário pianista, com
destaque para uma mão-cheia delas, entre janeiro e junho de 1950, em que lhe
pediu para tocar J. S. Bach. Provêm daí os conteúdos desta extraordinária
antologia, em grande parte inédita em CD, com Gieseking a mostrar que o Bach
das seis “Partitas”, de “O Cravo Bem Temperado”, de “Concerto Italiano”, “Invenções”,
“Prelúdios”, “Tocatas” e “Fantasias” podia ser tão seco quanto o Martini de
James Bond. Soubesse ele que não voltaria a tocar a maior parte destas obras –
tinha uma reputação a limpar e viria a dedicar-se a Ravel, Debussy e Mozart
antes de falecer prematuramente, em 1956 – e é possível que tivesse feito as
coisas de outra maneira, sem a transparência destas dinâmicas, sem tempi tão vertiginosos, sem evitar os
acordes maiores nas cadências dos “Prelúdios” em modo menor, por exemplo. Mas o
que teria sido de Gould, Ashkenazy, Schiff ou Levit sem este Gieseking assim tão
espontâneo, subtil e radical?
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