Que os
tempos não estão para meias-tintas, bem, sabemo-lo das crónicas de Faranaz
Keshavjee na revista “Visão”, por exemplo. Aliás, há coisa de uns meses, numa
entrevista para o “Diário de Notícias”, e a propósito de Donald Trump, naturalmente,
a investigadora levou o seu entrevistador a usar a expressão – e não será
preciso vir um diplomado em ciência da cognição explicar-nos em que é que se
fundamentava. É um pouco como, no ano passado, quando Vijay Iyer (que, por
sinal, tem um doutoramento em ciências cognitivas) dizia a “The New Yorker” que
nunca tinha tocado no Village Vanguard (entretanto já tocou, em maio) e que a
“História do jazz tinha músicos brancos e músicos negros, mas não [muitos]
castanhos”. O quociente entre o número de casos favoráveis à eleição de um
Presidente norte-americano “de cor” (como Iyer tem vindo a falar acerca do tom
da sua pele) e o número total de casos possíveis, então, parecia um obstáculo
estatístico intransponível até Barack Obama lhe passar por cima, uma perna de
cada vez, com as Pointer Sisters de ‘Yes We Can Can’ a construírem-lhe uma
pista de dança no imaginário.
Uma
das reações de Iyer a essa peregrina eleição, em 2008, foi compor ‘Far from Over’,
uma peça feita à medida do antigo grito de guerra da FRELIMO (“A Luta
Continua”) e dos instintos retóricos do eleito. Dez anos depois, até Hillary
Clinton o percebia: “A luta contra o racismo [neste país] está longe de ter
terminado”, declarava, em abril de 2016, numa reunião com a Rede de Ação
Nacional, de Al Sharpton. Tudo isto, portanto, antes das manifestações em Charlottesville
terem posto a maioria dos políticos do país a discutir o assunto como os
anúncios televisivos a detergentes de roupa falam das nódoas difíceis. Noutra
coisa não pensará Iyer, quando, em notas de apresentação deste seu disco,
refere que a “tomada de consciência a que a música obriga” é, hoje, em “tempos
de tanta e tão feroz precariedade”, “mais crucial”. Por isso, nos materiais de
promoção da editora, fala nestes termos: “Há uma espécie de ato de resistência
nesta música – uma ênfase na dignidade e na compaixão, uma recusa em permitir
que nos silenciem. Mas, ao mesmo tempo, ela possui uma qualidade de procura, ela
aspira a qualquer coisa [melhor] – que é basicamente a estética do blues tornada abstrata e incorporada
pelos vários instrumentistas”, conclui. Depois refere possibilidades como
“desafio e coesão” ou “alegria e perigo”. Enfim, diria Dickens que vai da
“primavera da esperança” ao “inverno do desespero”, e, seja como for, está
saturado de significantes.
Daí,
quiçá, recorrer ao sexteto – a formação de “Kind of Blue” (Miles Davis), claro,
mas também a dos Jazz Messengers, de Art Blakey, a partir de 1961 (embora aqui
não haja trombone), a de “Point of Departure” (Andrew Hill) ou, já agora,
levando as suas palavras à letra, a de “The Blues and the Abstract Truth”
(Oliver Nelson), em cujas águas territoriais, ora agitadas, ora abonançadas, parece
navegar. Consigo, em piano acústico e elétrico, leva Graham Haynes (em corneta,
fliscorne e eletrónica), Steve Lehman (saxofone alto), Mark Shim (saxofone
tenor), Stephan Crump (contrabaixo) e Tyshawn Sorey (bateria), e o resultado da
expedição até à fonte do cânone não possui nenhuma neutralidade académica. Pelo
contrário, Iyer não toca ‘O Povo Unido Jamais Será Vencido’ porque, sim, uma e
outra vez, a História dá mostras de o contrariar, mas o seu estilo, mais
aglutinante que sintético – como quem sugere que, nos Estados-Unidos, o princípio
do contacto entre culturas não produziu uma escola nacional –, expõe
continuamente as tensões pessoais de que deriva, sem receio de remover
materiais do seu contexto.
Ou seja, para si, talvez por estar tão entrelaçada com o
momento, por se revelar tão inseparável do real, a improvisação é uma
necessidade básica individual, uma forma de intervir, não só uma reação à
injustiça – verdade seja dita, em respeito a conteúdo, não haverá Presidente
mais dado à improvisação do que Trump. No livreto do CD, dirigir-se-ão a ele
estas palavras: “À medida que o arco da História avança e recua, há um facto
que se mantém: em termos locais ou globais, a luta pela igualdade e pelos
direitos humanos mais básicos está longe de acabar. Esperamos que esta música
reflita essa verdade (…). E que lhe sobreviva.” Vale o que vale, vindo daquele
que a “Downbeat” por três vezes considerou “Artista do Ano”, licenciado em Ciências
Exatas (Yale), mestre em Física (Berkeley) e professor universitário (Harvard).
E, de facto, face a este Executivo, melhor resposta que um conjunto de temas
tão ancorado no coletivo não se vislumbra, não obstante Lehman e Shim solarem
como quem não admite regulamentação nos mercados, independentemente da
eletrónica de Haynes sugerir aquele tipo de futuro distópico que conduzirá, um gadget de cada vez, à singularidade
tecnológica de John Von Neumann ou a despeito de um par de peças tão evasivas que
se diriam influenciadas pelo movimento retrógrado aparente de Mercúrio. Não
interessa – os tempos não estão para meias-tintas. E Vijay acabou de traçar uma
linha na areia.
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