Cem
anos antes da Clean Feed ter sido criada, era Lenine que coçava a cabeça: “A
questão ‘Que fazer?’ tem-se posto com particular acuidade”, concluía o bolchevique
nas páginas do jornal “Iskra”. Como é óbvio, não falava de jazz. Mas, a certa
altura, os detratores da chancela portuguesa suspeitavam que os seus fundadores
se referissem ao jazz tradicional exatamente como Lenine se havia referido ao
czarismo: “Temos estado a falar de uma preparação sistemática, metódica, mas
não quisemos de modo algum dizer com isso que a autocracia não possa cair senão
na sequência de um assalto organizado. É muito mais provável que ela caia sob o
choque de uma explosão espontânea.” Bom, no que diz respeito ao jazz enquanto
peça de museu, isto foi mais uma implosão do que outra coisa qualquer. Com
ironia, é o que traz à memória a Clean Feed neste vitriólico “What is to be
Done’, a sua quingentésima edição que, por sinal, num encarnadinho
profundamente soviético, lembra também o que um dia escreveu Bill Shoemaker a
propósito da rutura na arte: “A mudança é muitas vezes um disfarce artificioso
para continuidades mais profundas.”
A citação tem um ponto: é que, aqui, mesmo
sem o pretender, o trio de Ochs, Cline e Cleaver evoca uma época em que o jazz
mais predatório, o funk mais esquálido e o rock mais bacilar foram improváveis
companheiros de borga, em que se diria que o genoma do jazz ficou de tal forma comprometido
que só a ciência forense o podia identificar. Mas, nesse particular, Chuck
Berry é que tinha razão. Em 1980, quando a fanzine
“Jet Lag” o pôs a ouvir Sex Pistols, Clash, Ramones e Talking Heads, disse
assim: “Não é nada que não tenha ouvido antes. Isto parece precisamente o tipo
de jam que o BB ou o Muddy pudessem
fazer nos bastidores do antigo Anfiteatro Internacional, em Chicago.” Nem de
propósito, chamou-se no wave à lamela
em que se guardou o material genético deste “What is to be Done”. Uma
caracterização inspirada em Claude Chabrol, que, quando lhe perguntaram a razão
de os seus filmes divergirem tanto dos da Nouvelle Vague, e embora Krishna o
tivesse afirmado antes, respondeu: “Não há vagas, só o oceano”. Salpicado pelo
Ornette de “Of Human Feelings”, pelos Lounge Lizards, pelos Contortions e por aqueles
discos de inícios de 80 de gente como James “Blood” Ulmer, Material ou Elliott
Sharp, agora, é este trio que o vem recordar. Que fazer? Dar aos braços, claro.
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