20 de setembro de 2014

Rodrigo Amado Motion Trio & Peter Evans "Live in Lisbon" & "The Freedom Principle" (NoBusiness, 2014); Rodrigo Amado "Wire Quartet" (Clean Feed, 2014)



Peter Evans goza de tão privilegiada relação com Portugal que este nem é o seu primeiro “Live in Lisbon”. Esse gravou-o em 2009, ao longo de uma atuação em quarteto no Jazz em Agosto. E pela sua discografia, de modo mais ou menos nominal, encontra-se o enigmático “Scenes in the House of Music”, registado na Casa da Música, e o elucidativo “The Coimbra Concert”, captado no Salão Brazil. Em maio deste ano tocou no Panteão Nacional, em Lisboa, e na Culturgest, no Porto. E daqui a duas semanas estará no Barreiro para um concerto em quinteto e uma master class no mesmíssimo festival, o Out.Fest, a que Rodrigo Amado conduzirá o Wire Quartet. De tudo isto – e porque Evans se revelou uma força decisiva na criação de formas contemporâneas de expressão para trompete – tem ficado um balanço algo hagiográfico. Mas instantes há em que a prevalência do seu modelo comunicacional se prova eminentemente corruptora. Atente-se ao que se passou a 16 de março de 2013, no Teatro Maria Matos, durante uma reunião com Amado, Miguel Mira e Gabriel Ferrandini – o Motion Trio. Aí estiveram as cifradas figuras sinusoidais de que é intérprete exclusivo, a tradução musical da dispneia de que é praticante único, o retrato em pessoa da higidez e uns hálitos e humores tão voláteis que roçavam a bipolaridade, arsenais de grasnidos, guinchos e grunhidos. Um idioma tão invulgar, indecente e ilícito que, por vezes, quem consigo dividia o palco parecia estar a participar numa sessão de terapia da fala após um trauma. Daí resultava também a impressão de se fazerem ouvir, de uma só vez, dois discos em diferentes rotações. Coisa que a imagem parcial dessa noite, “Live in Lisbon”, ameniza num par de temas. Escalpelam-se aqui ritmos e timbres de maneira mais democrática e dispersa-se a tendência para a anulação mútua. Evans não é só um R2-D2 com mau génio, mas é óbvio que Amado lhe traz ao de cima o que de mais perverso possui e, por momentos, o que se examina é um dueto entre o saxofonista e um mimus polyglottos. Já com Mira, no fim de ‘Conflict is Intimacy’, o norte-americano rebenta plástico-bolha e joga ténis de mesa, deliciado com as múltiplas heresias que o seu instrumento lhe coloca à disposição. ‘Music is the Music Language’ é mais axiológico. E dir-se-ia, até, que se aceita o que Evans produz enquanto ficção, não tanto como realidade, ainda que se contrarie assim uma prática – a da música improvisada – em que normalmente sobressaem aspetos coletivistas. Amado convoca um tom mais inerte e tolhido do que o habitual, torna-se rugoso e rigoroso, morde notas e dissipa o manto de futilidade que o envolve com o mesmo esforço com que os restantes elementos do trio se tentam livrar das receitas que Evans lhes prescreve. Já este tem vagar para tudo – ora ameaça tocar o “Concerto para Trompete em Mi maior”, de Hummel, ora se propõe a anunciar uma tourada – e recorda o relato daqueles que, implicados num acidente de viação, asseguram ter assistido em câmara lenta ao desenrolar dos acontecimentos.
Passados dois dias, curiosamente, o grupo entrava em estúdio. E “The Freedom Principle” documenta esse encontro em que Evans se declarou um pivô cultural mais sutil e menos autónomo, não obstante permanecer antitético e contaminado por uma mentalidade de trincheira. A abrir o CD, no tema titular, a bateria de Ferrandini movimenta tropas agitadamente, no violoncelo de Mira atropelam-se as vozes dos inocentes e esquadrinha os céus o saxofone de Amado à medida que Evans solta o aviso de ataque aéreo. Pouco depois, o trompete é uma viatura a rasgar chuva miudinha encosta acima e dá-se uma cena de perseguição com dois competidores a ultrapassarem-se em curvas escorregadias e apertadas. É um espaço de improvisação simultânea em que não é apenas Evans que vai sem piedade no encalço das suas ideias. A estrada, junto ao mar, aparenta levar a um cemitério de navios: um zéfiro dirige gaivotas, respondem sirenes de nevoeiro, o ar salgado inquieta campainhas e afrouxa o chiar de roldanas enferrujadas, ondulam chapas. Rodrigo identifica o tom queixoso de que comungaram quer os saxofonistas de hard bop quer os de free jazz e sonda a paisagem. De um farol entrevê-se a promessa de bom tempo e talvez seja por isto que se promoveu esta viagem. A sensação desfaz-se com um solo de Evans em que derrapam pneus, estalam elásticos, travam sapatilhas num campo de basquetebol, não se calam os vizinhos nem aquele tipo chato numa festa, sintetizam-se uns 200 anos de música para trompete e dá-se mostras de se vislumbrarem outros 200. Em ‘Shadows’ trata-se de ciclos: num filme com fotogramas acelerados, Evans é um miúdo a fazer barulhos de motor com a boca enquanto brinca com carrinhos, depois é um adolescente a dar beijinhos e logo de seguida resmunga como um velho rabugento. O escopo de Amado é menor e mais alheado da ação: pinta um episódio da vida doméstica em que as personagens se diriam saídas do teatro cabúqui. E sempre que se suspendem os sopros dão-se surpresas: o baterista e o violoncelista vêm ver a obra, cercam-na de andaimes e cobrem-na de outra cor. A sua forma de agir é tão contrária à comum que se caracteriza com frequência em termos negativos, mas naquelas ocasiões em que se confundiria o que aqui se passa com a representação de um quarteto de jazz particularmente desalinhado descrever-se-ia uma secção rítmica que vem mais de dentro da música do que de baixo. Fechando o álbum, em ‘Pepper Packed’ soa a corneta de caça que larga os beagles atrás da raposa e um epigramático solo de Evans, em que só faltou o “Voo do Moscardo”, de Rimsky-Korsakov, simboliza perfeitamente a facilidade do seu autor em acumular informação superficial e o delinquente deleite que tem em divulgá-la. Alienado, Amado estende notas como um saxofonista a tocar debaixo de uma ponte e Evans corre poeticamente até si. Enleiam-se instantaneamente numa linha melódica e lança-se a dúvida se não haveria, então, uma peça a passar para o papel. Aliás, a questão é: sentir-se-iam mais ou menos orgulhosos se o fizessem?
Verifica-se tanto de revogatório na experiência de Rodrigo Amado com Peter Evans que se tomaria “Wire Quartet” – Amado, Ferrandini, Hernâni Faustino e Manuel Mota – por um regresso a prazeres mais caseiros. Mas, antecedendo-a, remonta a janeiro de 2011 esta elementar combinação de biografia e fantasia, utópica parábola para uma arte que se quer movida segundo a lógica e a precisão da consciência e na qual se anseia detetar o capricho e o poder de invenção do instinto. Começa e, aos acordes inaugurais, parece trazer versões muito oblíquas de canções como ‘My Old Flame’ ou ‘You Don’t Know What Love Is’ que imediatamente leva a passear de dimensão em dimensão. Ferrandini lembra os tempos em que batalhões de escriturários martelavam coreograficamente em máquinas de escrever os guiões das suas sofisticadas existências e Mota, à guitarra elétrica, assemelha-se a um pescador a desemaranhar redes, ignorante de qualquer outro grau de delicadeza na sua vida. Aos 10 minutos estão no topo de um edifício ou de uma falésia olhando os seus instrumentos do alto. Amado ataca conjuntos de 4 ou 5 notas e é como se uma verdade universal ficasse promulgada a cada modulação. Há uníssonos como flores murchas a indicar a entrada de um templo abandonado. E ainda se ouve um blues exequial eticamente cadenciado por Faustino no contrabaixo. E escuta-se uma estória dúctil como a memória, que vem de perto e chega tão longe.

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