Peter Evans goza de tão
privilegiada relação com Portugal que este nem é o seu primeiro “Live in Lisbon”.
Esse gravou-o em 2009, ao longo de uma atuação em quarteto no Jazz em Agosto. E
pela sua discografia, de modo mais ou menos nominal, encontra-se o enigmático “Scenes
in the House of Music”, registado na Casa da Música, e o elucidativo “The
Coimbra Concert”, captado no Salão Brazil. Em maio deste ano tocou no Panteão
Nacional, em Lisboa, e na Culturgest, no Porto. E daqui a duas semanas estará
no Barreiro para um concerto em quinteto e uma master class no mesmíssimo festival, o Out.Fest, a que Rodrigo Amado
conduzirá o Wire Quartet. De tudo isto – e porque Evans se revelou uma força
decisiva na criação de formas contemporâneas de expressão para trompete – tem ficado
um balanço algo hagiográfico. Mas instantes há em que a prevalência do seu
modelo comunicacional se prova eminentemente corruptora. Atente-se ao que se
passou a 16 de março de 2013, no Teatro Maria Matos, durante uma reunião com
Amado, Miguel Mira e Gabriel Ferrandini – o Motion Trio. Aí estiveram as
cifradas figuras sinusoidais de que é intérprete exclusivo, a tradução musical
da dispneia de que é praticante único, o retrato em pessoa da higidez e uns hálitos
e humores tão voláteis que roçavam a bipolaridade, arsenais de grasnidos,
guinchos e grunhidos. Um idioma tão invulgar, indecente e ilícito que, por
vezes, quem consigo dividia o palco parecia estar a participar numa sessão de
terapia da fala após um trauma. Daí resultava também a impressão de se fazerem
ouvir, de uma só vez, dois discos em diferentes rotações. Coisa que a imagem
parcial dessa noite, “Live in Lisbon”, ameniza num par de temas. Escalpelam-se aqui
ritmos e timbres de maneira mais democrática e dispersa-se a tendência para a
anulação mútua. Evans não é só um R2-D2 com mau génio, mas é óbvio que Amado
lhe traz ao de cima o que de mais perverso possui e, por momentos, o que se examina
é um dueto entre o saxofonista e um mimus
polyglottos. Já com Mira, no fim de ‘Conflict is Intimacy’, o
norte-americano rebenta plástico-bolha e joga ténis de mesa, deliciado com as
múltiplas heresias que o seu instrumento lhe coloca à disposição. ‘Music is the
Music Language’ é mais axiológico. E dir-se-ia, até, que se aceita o que Evans produz
enquanto ficção, não tanto como realidade, ainda que se contrarie assim uma
prática – a da música improvisada – em que normalmente sobressaem aspetos coletivistas.
Amado convoca um tom mais inerte e tolhido do que o habitual, torna-se rugoso e
rigoroso, morde notas e dissipa o manto de futilidade que o envolve com o mesmo
esforço com que os restantes elementos do trio se tentam livrar das receitas que
Evans lhes prescreve. Já este tem vagar para tudo – ora ameaça tocar o
“Concerto para Trompete em Mi maior”, de Hummel, ora se propõe a anunciar uma tourada
– e recorda o relato daqueles que, implicados num acidente de viação, asseguram
ter assistido em câmara lenta ao desenrolar dos acontecimentos.
Passados dois dias, curiosamente, o
grupo entrava em estúdio. E “The Freedom Principle” documenta esse encontro em
que Evans se declarou um pivô cultural mais sutil e menos autónomo, não
obstante permanecer antitético e contaminado por uma mentalidade de trincheira.
A abrir o CD, no tema titular, a bateria de Ferrandini movimenta tropas
agitadamente, no violoncelo de Mira atropelam-se as vozes dos inocentes e
esquadrinha os céus o saxofone de Amado à medida que Evans solta o aviso de
ataque aéreo. Pouco depois, o trompete é uma viatura a rasgar chuva miudinha encosta
acima e dá-se uma cena de perseguição com dois competidores a ultrapassarem-se em
curvas escorregadias e apertadas. É um espaço de improvisação simultânea em que
não é apenas Evans que vai sem piedade no encalço das suas ideias. A estrada,
junto ao mar, aparenta levar a um cemitério de navios: um zéfiro dirige
gaivotas, respondem sirenes de nevoeiro, o ar salgado inquieta campainhas e
afrouxa o chiar de roldanas enferrujadas, ondulam chapas. Rodrigo identifica o
tom queixoso de que comungaram quer os saxofonistas de hard bop quer os de free jazz
e sonda a paisagem. De um farol entrevê-se a promessa de bom tempo e talvez
seja por isto que se promoveu esta viagem. A sensação desfaz-se com um solo de
Evans em que derrapam pneus, estalam elásticos, travam sapatilhas num campo de
basquetebol, não se calam os vizinhos nem aquele tipo chato numa festa,
sintetizam-se uns 200 anos de música para trompete e dá-se mostras de se vislumbrarem
outros 200. Em ‘Shadows’ trata-se de ciclos: num filme com fotogramas acelerados,
Evans é um miúdo a fazer barulhos de motor com a boca enquanto brinca com
carrinhos, depois é um adolescente a dar beijinhos e logo de seguida resmunga
como um velho rabugento. O escopo de Amado é menor e mais alheado da ação:
pinta um episódio da vida doméstica em que as personagens se diriam saídas do
teatro cabúqui. E sempre que se suspendem os sopros dão-se surpresas: o
baterista e o violoncelista vêm ver a obra, cercam-na de andaimes e cobrem-na
de outra cor. A sua forma de agir é tão contrária à comum que se caracteriza com
frequência em termos negativos, mas naquelas ocasiões em que se confundiria o
que aqui se passa com a representação de um quarteto de jazz particularmente
desalinhado descrever-se-ia uma secção rítmica que vem mais de dentro da música
do que de baixo. Fechando o álbum, em ‘Pepper Packed’ soa a corneta de caça que
larga os beagles atrás da raposa e um epigramático solo de Evans, em que só
faltou o “Voo do Moscardo”, de Rimsky-Korsakov, simboliza perfeitamente a
facilidade do seu autor em acumular informação superficial e o delinquente deleite
que tem em divulgá-la. Alienado, Amado estende notas como um saxofonista a tocar
debaixo de uma ponte e Evans corre poeticamente até si. Enleiam-se instantaneamente
numa linha melódica e lança-se a dúvida se não haveria, então, uma peça a
passar para o papel. Aliás, a questão é: sentir-se-iam mais ou menos orgulhosos
se o fizessem?
Verifica-se tanto de revogatório na
experiência de Rodrigo Amado com Peter Evans que se tomaria “Wire Quartet” –
Amado, Ferrandini, Hernâni Faustino e Manuel Mota – por um regresso a prazeres
mais caseiros. Mas, antecedendo-a, remonta a janeiro de 2011 esta elementar
combinação de biografia e fantasia, utópica parábola para uma arte que se quer
movida segundo a lógica e a precisão da consciência e na qual se anseia detetar
o capricho e o poder de invenção do instinto. Começa e, aos acordes inaugurais,
parece trazer versões muito oblíquas de canções como ‘My Old Flame’ ou ‘You
Don’t Know What Love Is’ que imediatamente leva a passear de dimensão em
dimensão. Ferrandini lembra os tempos em que batalhões de escriturários martelavam
coreograficamente em máquinas de escrever os guiões das suas sofisticadas
existências e Mota, à guitarra elétrica, assemelha-se a um pescador a
desemaranhar redes, ignorante de qualquer outro grau de delicadeza na sua vida.
Aos 10 minutos estão no topo de um edifício ou de uma falésia olhando os seus
instrumentos do alto. Amado ataca conjuntos de 4 ou 5 notas e é como se uma
verdade universal ficasse promulgada a cada modulação. Há uníssonos como flores
murchas a indicar a entrada de um templo abandonado. E ainda se ouve um blues exequial eticamente cadenciado por
Faustino no contrabaixo. E escuta-se uma estória dúctil como a memória, que vem
de perto e chega tão longe.
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