Amplamente
sugestivo, o plano inicial de “I Love Kuduro”, ao largo da baía de Luanda, é,
também, o mais conscientemente cinematográfico e historiográfico entre os que o
documentário possui. Mas qualquer perturbação narrativa se desfaz logo que
Mário Patrocínio tira o foco das costas de um remador em tronco nu para de
seguida o ajustar aos contornos de uma cidade com mais gruas do que prédios.
Nesse segundo, o que o realizador dá a conhecer é uma realidade que, minutos depois,
se manifesta deste modo na boca de Shunnoz Fiel: “Eu estou aqui e sou Angola”. E
é dessa curta introdução, ou melhor, do sigiloso murmúrio das águas que lhe
perfaz a banda-sonora, que vai emergindo um espaço urbano que se diria ter
escapado ao apocalipse por um triz. É apropriado que assim seja, pois, de
facto, sem Guerra Civil não teria havido kuduro.
E é nessa evidência que, de maneira mais ou menos eufemística, se vai
tropeçando a cada capítulo do filme. Fiel fala do conflito enquanto ‘o grande formador’;
Francis Boy relata uma fuga em família do Malanje; Nagrelha diz “Nossos avós já
sofreram muito”; Manda Chuva, dançarino, conclui “A guerra é que nos faz fazer tudo
o que você costuma ver”. Só Eduardo Paim não vislumbra a incongruência de
analisar o kuduro à luz do passado. Mas
é nesse inultrapassável paradoxo – o de que, tendo tudo a ver com a cultura
angolana de hoje, quase nenhum ponto de contacto mantém com a música angolana
de ontem – que, para o bem e para o mal, reside o busílis. E será isso o que
permitiu que a ordem pimba internacional (de Don Omar e Shakira a Pitbull) e lusófona
(de Emanuel e José Malhoa a Adriana Lua) o tenha prontamente liofilizado. Este
extraordinário objeto devolve-lhe a vida.
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