Foi Aileen Mehle quem o revelou em
primeira mão, a 24 de março de 1971, numa coluna que assinava sob pseudónimo (Suzy)
e que inúmeras publicações norte-americanas difundiam um pouco por todo o país:
“Sinatra vai fazer as coisas à sua maneira; reforma aos 55”. O recorte de
imprensa pode ainda hoje ser consultado no site
do “Chicago Tribune”: “Frank Sinatra, a estrela entre as estrelas, a voz que emocionou
milhões, vencedor de um Óscar, retira-se do mundo do espetáculo aos 55 anos.” Se
o texto parecia encomendado, é porque o foi. Aliás, no artigo, só a ostensiva
alusão a ‘My Way’ no cabeçalho dá mostras de ter escapado à revisão do próprio
Sinatra, já que, de resto, nada comprometia a modéstia do gesto que se vinha relatar.
Principalmente quando se aproveitava o ensejo para anunciar um concerto de
despedida com receitas a reverter para a caixa de previdência dos profissionais
da indústria do entretenimento. Só depois vinham as declarações do cantor, necessariamente
polidas pela humildade, agradecendo a generosidade do público ao longo de três
décadas e confessando a forma privilegiada em que “pôde comprovar o vínculo que
une homens e mulheres de todas as cores, credos, idades ou estatuto social;
aquilo que a humanidade possui em comum, e que, talvez mais do que todas as
outras, a linguagem da música consegue evocar.” O evangelismo da afirmação ficou
imortalizado numa manchete da revista “Life” desse ano: “Sinatra Says Good-by
and Amen”.
Como se sabe, e como era provável
que se soubesse de antemão, a reforma iria durar pouco. Mas, não fosse o diabo
tecê-las, a verdade é que ninguém poderia faltar ao apregoado concerto de
despedida. Foi de tal modo que, beneficiando da complacência da plateia da
primeira noite, Sinatra teve de o dividir em duas: a 12 de junho no Dorothy
Chandler Pavilion e a 13 no Ahmanson Theater, espaços contíguos no Music Center
de Los Angeles. A cerimónia teve o patrocínio da princesa Grace do Mónaco (que
havia contracenado com Sinatra em “Alta Sociedade”), realização de Vincente
Minnelli (que havia dirigido Sinatra em “Deus Sabe Quanto Amei”), e o seu
programa era guarnecido com os nomes de Bob Hope, Barbra Streisand, Dean
Martin, Sammy Davis Jr. ou Jack Lemmon. Sinatra escolheu pessoalmente os onze
temas que iria cantar. A ideia era a da sessão de terapia coletiva, presume-se,
para não dizer regressão coletiva, em que poria em revista a história da sua
vida e, por conseguinte, a história pessoal de todos quanto o escutavam.
Começou por ‘All or Nothing at All’, o seu primeiro êxito, e terminou com
‘Angel Eyes’, desviando-se do feixe de luz do holofote no momento exato em que
entoava o derradeiro verso da canção, “Excuse me while I disappear”, capitulando
no escuro como num drama de Shakespeare. Para muitos, esse alinhamento foi o
mais próximo que esteve de redigir a sua autobiografia.
É, por isso, apropriado que “All or
Nothing at All”, o documentário que Alex Gibney lhe consagrou
neste ano de centenário, se permita eleger narrativamente esse concerto de
despedida como fio condutor, ao qual torna uma e outra vez, quase sempre por via
da catarse. O que é o mesmo que dizer que é por intermédio das canções que mais
facilmente se tem acesso ao homem. É normal. Por um lado, porque, no fundo, foi
o canto que fez de Sinatra uma personagem irresistível, e porque, nesse
domínio, há vulgaridades que se vão repetindo ao longo da sua carreira, como
aquela, paradigmática, de Gordon Jenkins (orquestrador de não menos exemplares álbuns
de Sinatra como “Where Are You?” ou “September of My Years”), que proclamava
que “quando o Frank canta uma canção, acredita totalmente nela”. Por outro,
porque era por aí que dava vazão às suas mais ambíguas pulsões sem jamais abdicar
da clareza e subtileza dos seus modos, e porque, inevitavelmente, muito daquilo
que fazia quando não cantava servia para conjugar todo o tipo de resistências.
Mas que figura pública com a sua longevidade – e logo uma tão apta a pôr-se em
contacto com as mais profundas estruturas da existência moderna – não se vê em
algum ponto da sua vida sobrecarregada de afetos e desafetos? O filme está assombrado
por semelhantes inquietações.
“All or
Nothing at All” goza de uma relação privilegiada com alguém que, de certa
forma, se reputa como ‘biógrafo oficial’ (Charles Pignone, um dos seus produtores
executivos e autor de “Sinatra 100”), o que lhe permitiu ter acesso a
depoimentos de Nancy Barbato Sinatra (casada com Frank entre 1939 e 1951) e dos
seus filhos (Nancy, Frank Jr. e Tina), mas não se opõe à passagem de correntes que
sugerem uma versão menos convencional dos acontecimentos. Não obstante, no capítulo
em que examina as ligações entre Sinatra e a Máfia deixa no ar mais perguntas
que respostas. Por exemplo, ao contrário do que Mario Puzo popularizou em “O
Padrinho”, não embarca na velha história de que Tommy Dorsey só o libertou das
obrigações legais para com a sua orquestra quando recebeu a tal “proposta irrecusável”
(reza a lenda, a nada eufemística pistola de Willie Moretti, de quem Sinatra
era afilhado, apontada à cabeça), mas também se escusa a mostrar uma notícia da
“Billboard” que dá conta da compra do contrato de Sinatra por Jules C. Stein, patrão
da MCA. E é no mínimo curioso que dependa exclusivamente do que disse o cantor acerca
da sua viagem de finais de 1946 a Cuba. Isto é, quem ignore que a Conferência
de Havana, em que se reuniram os patrões das principais famílias do crime
organizado – de Lucky Luciano e Frank Costello a Don Vito e Sam Giancana –, incluía
um jantar de gala que tinha Sinatra como cabeça de cartaz corre seriamente o
risco de ficar convencido de que tudo não passou de uma enorme coincidência.
Mas
Gibney é menos púdico quando deixa recair a sua atenção sobre John F. Kennedy,
aceitando factos que Tina Sinatra vem há muito tornando públicos acerca do
papel que o seu pai desempenhou na aproximação dos Kennedy a Giancana por
altura das eleições presidenciais de 1960. Também o episódio que determinou o
rompimento definitivo entre os dois, em março de 1962, irrompe sem filtros.
Resumindo: depois de Sinatra ter gasto uma fortuna a construir o que apelidou
de Casa Branca ocidental na sua propriedade de Palm Springs, heliporto
incluído, o sempre concupiscente Kennedy, pressionado pelo irmão, Bobby, transferiu
à última da hora a projetada escapadinha de fim de semana com Sinatra para a casa
de Bing Crosby. Republicano, sim, mas fundamentalmente limpo de associações
criminosas e, mais significativamente, capaz de até aí conduzir Marilyn Monroe,
com quem o presidente terá passado a noite. Ou seja, o documentário afiança a
teoria de que foi a mágoa decorrente de tudo isto – da momentânea
desclassificação de Sinatra da nova aristocracia do poder político – que o afastou
do Partido Democrata e o levou até Reagan e Nixon. Está certo, mas não custava
dizer que só em 1986, quando Kitty Kelley, persona
non grata no seio do clã Sinatra, lançou “His Way: The Unauthorized Biography of Frank
Sinatra”, veio o assunto mais insistentemente a lume.
Seja como for, o documentário
nunca perde o fio à meada. Ao invés, a sua capacidade de seguir a par e passo a
biografia de Sinatra sugere um conjunto de ideias imperturbável, como se, por
osmose, do seu objeto tivesse absorvido alguma daquela singular serenidade. Como
um enorme fresco, cá estão os anos formativos, entre guerras, marcados pela
Grande Depressão, em que, apesar de tudo, aquele menino pálido e magro de Jersey,
com a parte esquerda do rosto marcada pelos fórceps que o trouxeram ao mundo, se
deixa fascinar pelas aptidões sociais da mãe, Natalina Garaventa, ao mesmo
tempo que, porventura de maneira inconsciente, se permite atrair pela
capacidade de introspeção do pai, Antonino. E aqui está igualmente o que tão
bem se conhece: a participação no concurso de talentos de Edward Bowes,
biscates em Nova Iorque, emissões da WNEW a partir da Rustic Cabin, aulas de
elocução com John Quinlan, o namoro e casamento com Nancy, o convite para
ingressar na orquestra de Harry James, e subsequentemente na de Dorsey, as
gravações iniciais e o arranque da carreira a solo, a estreia no Paramount, a sua
transformação em ídolo daquela legião de meninas de soquetes e saias compridas
que esperavam por si à porta dos teatros, rúbricas na rádio, a mudança para
Hollywood, filmes, casos com Marilyn Maxwell ou Lana Turner, o casamento com
Ava Gardner (que o arruinou), o progressivo decréscimo da sua popularidade até
que a atuação em “A Um Passo da Eternidade” lhe relança a carreira, a sequência
milagrosa de álbuns na Capitol, a não menos prodigiosa série de namoradas (mesmo
se acabava sempre por cantar ‘The Lady Is a Tramp’), a transferência para Las
Vegas e a formação do Rat Pack (cuja fama perdurável passou por “Onze Homens e
um Segredo”), a fundação da Reprise, a filantropia, o casamento com Mia Farrow,
o encontro com Jobim e aquelas duas décadas finais na estrada, saltando de
arena em arena, sucessivamente celebrado em vida, de que fica uma frase que
disse a Pete Hamill, autor de “Why Sinatra Matters”: “Talvez saibamos menos das
coisas à medida que envelhecemos”. Afligido pela demência e vítima de ataque
cardíaco, faleceu a 14 de maio de 1998.
O livro de Hamil acaba de
regressar aos escaparates, mas no mercado há mais duas mãos-cheias de edições, entre
as quais se destacam “Sinatra” (para a mesinha do café, limitado a 1000
unidades e à venda por 1300 euros), “Sinatra’s Century”, de David Lehman,
“Sinatra: The Photographs”, organizado por Andrew Howick, e, acima de tudo, “Sinatra:
The Chairman”, de James Kaplan, que, somada ao volume que a precedeu (“Frank:
The Voice”), se arrisca a tornar definitiva. Quanto a discos, são às dezenas as
reedições, muitas delas em vinil, e as antologias, entre as quais se recomenda “Ultimate
Sinatra” (4 CD, Universal), com registos entre 1939 e 1979, ou “Classic
Sinatra: His Great Performances 1953-1962” (3 CD Lucky Stars/Distrijazz), concentrada,
esta, no material da Capitol.
Mas é “A Voice On Air: 1935-1955”,
extraída a emissões radiofónicas protagonizadas por Sinatra, com dezenas de
inéditos e versões com orquestrações jamais publicadas, e que inclui participações
de Nat King Cole, Benny Goodman, Doris Day ou Slim Gaillard, que se prova a
peça que faltava neste puzzle. Dos pré-históricos Hoboken Four aos The Four
Sharps, da bravia banda de James à aveludada orquestra de Dorsey, de transcrições
de um programa como “Songs by Sinatra” às de “Frank Sinatra in Person”, eis o
cantor no centro da vida familiar e cultural norte-americana. Através da sua
audição, fica patente a gradual definição de um estilo tão destemido quão
vulnerável, tão exuberante quão reservado. O fraseado de Sinatra, solto e simples,
de uma imaginação interpretativa sem precedentes, tinha o sotaque do
instrumentalismo do jazz, das suas inflexões e sensibilidades extremas. Nunca a
divisão do ritmo de uma canção, que fazia flutuar, havia soado tão natural. Ele,
após décadas de enfáticos tenores e de encerados barítonos desprovidos de
emoção, com um domínio sobre a respiração a roçar o do mergulhador em apneia,
veio amaciar as esquinas dos poemas, das melodias, dos timbres, conferindo
dramatismo ao espectro integral de cada tema. A origem de tudo isto está nestas
gravações, ainda que só a partir dos 40, em LP como “In the Wee Small Hours”,
“Songs for Swingin’ Lovers!” ou “Only the Lonely” (todos com arranjos de Nelson
Riddle) tivesse assumido proporções sacramentais. O mundo das artes a braços
com o neorrealismo e Sinatra a cantar Porter, Gershwin, Berlin, Van Heusen,
Hart, Cahn, Kern, Styne, Mercer ou Hammerstein, como quem diz que, fachada por
fachada, preferia a do romance.
Era costume terminar um espetáculo brindando à assistência: desejava a
todos sorte e saúde, paz na terra, muito amor e carinho, e, invocando um velho
cliché, fazia votos que chegassem aos 100 e que fosse a sua a última voz que ouvissem
– tivessem todos essa sorte.
Sem comentários:
Enviar um comentário