Agustí
Fernández* (na foto) senta-se ao piano de cauda por convenção, mas o concerto começa apenas
quando se torna a pôr de pé. Ignora o teclado e estende a cabeça sob a tampa
como quem espreita pela boca de uma gruta para ver se lá consegue entrar. Alto,
magro, calvo, com o busto inclinado para a frente, lembra o “Homem que
Caminha”, de Giacometti. Apoia-se sobre o braço esquerdo e estende para o lado
a mão direita, que sacode como se estivesse dormente e que abre e fecha de forma
praticamente fisioterapêutica. Às apalpadelas num conjunto de peças soltas, pega,
enfim, num bloco de madeira e começa a percuti-lo no interior do piano. Com a
outra mão agarra numa medalha de bronze e arrasta-a com força sobre as suas cordas,
como a professora que arranha o quadro da sala de aulas com as unhas para
chamar a atenção dos alunos. Na assistência, há seguramente quem o situe antes entre
a figura do cirurgião e a do mecânico, por exemplo, que só depois de pegarem no
bisturi ou na chave de fendas é que dão conta da dimensão do estrago. Agustí possui
um interesse anatómico pelo instrumento que toca, cujos constituintes esgravata
e arrebunha e ofende repetidamente. E há algo vagamente desumano na maneira em
que dele se aproxima e se afasta, em que anda à sua volta e lhe explora o
flanco. Traz à memória um jogador de snooker
a circundar a mesa e a calcular a tacada correta. Quando finalmente passa os
dedos pelas teclas apanha a plateia de surpresa: é que, durante uma fração de
segundo, escutar um piano a ser tocado de dentro para fora, sem intervenção dos
martelos, foi a coisa mais natural do mundo.
Isto
passou-se há oito dias, no Barreiro, no âmbito do Out.Fest, e é provável que se
repita já na próxima quinta-feira, dia 20, pelas 19h, no Convento São
Francisco, em Coimbra, um dos palcos da 14ª edição dos Encontros Internacionais de Jazz da cidade. Com o espanhol planeiam estar Hugo Antunes, Roger Turner e
John Butcher, nomes que têm em comum essa fascinante capacidade de virar o jazz
do avesso. Curiosamente, logo após essa atuação, será como as suas costuras
nunca tivessem estado à mostra quando, às 22h, o quinteto de Sandro Norton
tirar as medidas a Gary Burton e a Maria João. Na mesma noite, destaque-se
ainda o encontro de Eve Risser com Marcelo dos Reis (23h30, Salão Brazil). Na
sexta-feira o festival ficará menos católico ao receber Mette Henriette (Igreja
de São Francisco, 19h) e a Orquestra Nomade (Salão Brazil, 22h30) e no sábado estará
mesmo ímpio, com o trio de Marc Ribot.
Quase
a atingir a maioridade está o SeixalJazz, na 17ª edição. Arranca dia 21, com a
apregoada “estreia em Portugal continental” do quinteto de Dino Saluzzi (os
concertos são sempre às 22h, no Fórum Cultural). Há alguma ostentação no
anúncio, que podia referir que o argentino já tocou no país com outras
formações, e há uma citação de Jean-Jacques Rousseau que vinha a calhar (até
porque o mesmo quinteto toca três dias antes na Casa da Música), mas trata-se
de um conjunto que conseguiu manter a sua inocência tão intacta que nada se
ganha em esmiuçar o assunto. Vinda de Coimbra, também Henriette tem queda para
o angelismo (dia 22). O festival prossegue com o quinteto de Gonçalo Marques
(26), com o fantástico Grand Valis, de Hugo Carvalhais (27), e com o quarteto
de Ricardo Toscano (28). Encerra com um recital a solo de Colin Stetson (29)
que contrariará todas as expetativas da sua condição.
* Declaração de interesse: no verão de 2008 sugeri a Agustí Fernández que gravasse um disco inspirado pela música espanhola para piano do século XX, enviando-lhe, para o efeito, um par de CDR com cerca de 40 peças de Albeniz, Granados, Falla, Guridi, Mompou, Blancafort, Turina, Gerhard ou Garbizu. Esse disco acabou por ser produzido com o título de "El laberint de la memòria" e editado pela Mbari em meados de 2011. Está já esgotado.
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