“Eles matam-te, se chorares”, conta
Arn Chorn Pond, num depoimento incluído nas notas de apresentação deste CD,
recordando o período em que foi recrutado à força pelo Khmer Vermelho. Era uma
criança, nem ele sabe de quantos anos, e lembra-se de participar em espetáculos
para animar as tropas. Mas até com isso aquela torrencial sucessão de decretos
acabou. É que, de súbito, a expressão musical infringia os desígnios de um Pol
Pot que, entre tantas outras, vinha de pronunciar no Camboja a interdição do
intelectualismo, do profissionalismo, isto é, de qualquer atividade que
exigisse algum grau de especialização, e, fundamentalmente, da manifestação de
emoções que trouxessem à memória o passado. Ian Brennan, que em junho de 2015
gravou este “Khmer Rouge Survivors” em Phnom Penh, acrescenta agora que, a
Pond, “trocaram a flauta por uma metralhadora e enviaram-no para a frente”,
onde foi ensinado a odiar, a matar, a torturar e a enterrar no fundo de si
mesmo a culpa, o remorso e a compaixão.
“Tinha nove anos e perdi tudo num
piscar de olhos”, canta Thuch Savanj, nascido em 1965 e condenado a viver com
marcas no corpo e na mente dos estilhaços da bomba que reclamou a vida à sua
mãe. O tema chama-se ‘Jivit Rongkroh Proh Songkream’ (‘A Minha Vida Enquanto
Vítima de Guerra’) e possui versos como estes: “Fui submetido a trabalhos
forçados e obrigado a viver entre crianças que não conhecia”, “A minha tia, o meu
pai e o meu avô foram assassinados, mortos à fome pelo Khmer Vermelho”, “Sentia
tanta dor, como se uma montanha me tivesse caído em cima, mas já não sabia chorar”,
“Estava em choque”. É acompanhado por um chapey
dong veng (uma espécie de alaúde de braço longo tipicamente cambojano), num
arranjo em que, ao invés de as pinçar, como de costume, a palheta é arrastada
pela borda, corda acima, corda abaixo, de forma a reproduzir aquele tipo de
sons que, num filme de terror, fazem no tampo do caixão as unhas de um enterrado
vivo. Talvez seja exatamente assim que Savanj se sente.
Também Kong Nai podia citar o
Carlos Drummond de “O Enterrado Vivo”, nomeadamente por aquele terceto do “Sempre
no meu amor a noite rompe/ Sempre dentro de mim meu inimigo/ E sempre no meu
sempre a mesma ausência”. Não será outro sentimento que leva esse que a varíola
privou da visão, e a que chamam “Ray Charles do Camboja”, a cantar, aqui,
‘Kamara Rongkaam’ (‘Uma Nação em Luto’) ou ‘Boonchnam Kamtkosal’ (‘Começa Agora
o Meu Pesar’). Um dos últimos mestres do chapey,
e o mais popular compositor e intérprete incluído na compilação, Nai, de 70
anos, ganhou fama no tempo de Norodom Sihanouk e foi dos poucos músicos dessa
era a sobreviver ao regime de Pol Pot (cf.
“Don’t Think I’ve Forgotten:
Cambodia’s Lost Rock And Roll”, documentário de John Pirozzi). Entre
1975 e 1979 era mais um entre milhões de prisioneiros nos campos da morte,
alimentado a papas, por, em virtude da cegueira, não produzir o mesmo que
outros detidos. Foi largado à sua sorte quando o exército vietnamita invadiu o
país.
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