29 de outubro de 2016

“Khmer Rouge Survivors: They Will Kill You, If You Cry” (Glitterbeat, 2016)



“Eles matam-te, se chorares”, conta Arn Chorn Pond, num depoimento incluído nas notas de apresentação deste CD, recordando o período em que foi recrutado à força pelo Khmer Vermelho. Era uma criança, nem ele sabe de quantos anos, e lembra-se de participar em espetáculos para animar as tropas. Mas até com isso aquela torrencial sucessão de decretos acabou. É que, de súbito, a expressão musical infringia os desígnios de um Pol Pot que, entre tantas outras, vinha de pronunciar no Camboja a interdição do intelectualismo, do profissionalismo, isto é, de qualquer atividade que exigisse algum grau de especialização, e, fundamentalmente, da manifestação de emoções que trouxessem à memória o passado. Ian Brennan, que em junho de 2015 gravou este “Khmer Rouge Survivors” em Phnom Penh, acrescenta agora que, a Pond, “trocaram a flauta por uma metralhadora e enviaram-no para a frente”, onde foi ensinado a odiar, a matar, a torturar e a enterrar no fundo de si mesmo a culpa, o remorso e a compaixão.

“Tinha nove anos e perdi tudo num piscar de olhos”, canta Thuch Savanj, nascido em 1965 e condenado a viver com marcas no corpo e na mente dos estilhaços da bomba que reclamou a vida à sua mãe. O tema chama-se ‘Jivit Rongkroh Proh Songkream’ (‘A Minha Vida Enquanto Vítima de Guerra’) e possui versos como estes: “Fui submetido a trabalhos forçados e obrigado a viver entre crianças que não conhecia”, “A minha tia, o meu pai e o meu avô foram assassinados, mortos à fome pelo Khmer Vermelho”, “Sentia tanta dor, como se uma montanha me tivesse caído em cima, mas já não sabia chorar”, “Estava em choque”. É acompanhado por um chapey dong veng (uma espécie de alaúde de braço longo tipicamente cambojano), num arranjo em que, ao invés de as pinçar, como de costume, a palheta é arrastada pela borda, corda acima, corda abaixo, de forma a reproduzir aquele tipo de sons que, num filme de terror, fazem no tampo do caixão as unhas de um enterrado vivo. Talvez seja exatamente assim que Savanj se sente.

Também Kong Nai podia citar o Carlos Drummond de “O Enterrado Vivo”, nomeadamente por aquele terceto do “Sempre no meu amor a noite rompe/ Sempre dentro de mim meu inimigo/ E sempre no meu sempre a mesma ausência”. Não será outro sentimento que leva esse que a varíola privou da visão, e a que chamam “Ray Charles do Camboja”, a cantar, aqui, ‘Kamara Rongkaam’ (‘Uma Nação em Luto’) ou ‘Boonchnam Kamtkosal’ (‘Começa Agora o Meu Pesar’). Um dos últimos mestres do chapey, e o mais popular compositor e intérprete incluído na compilação, Nai, de 70 anos, ganhou fama no tempo de Norodom Sihanouk e foi dos poucos músicos dessa era a sobreviver ao regime de Pol Pot (cf. “Don’t Think I’ve Forgotten: Cambodia’s Lost Rock And Roll”, documentário de John Pirozzi). Entre 1975 e 1979 era mais um entre milhões de prisioneiros nos campos da morte, alimentado a papas, por, em virtude da cegueira, não produzir o mesmo que outros detidos. Foi largado à sua sorte quando o exército vietnamita invadiu o país.

De certo modo, e porque “nenhum de nós ficará neste mundo”, diz, Brennan acaba sempre a lidar com fantasmas. Este ano editou um livro, “How Music Dies”, em parte consagrado à crónica das suas gravações de campo (Zomba Prison Project, Acholi Machon, Malawi Mouse Boys, Hanoi Masters, etc.), em que se lê: “Isto são gritos para o além. Telefonemas de emergência na forma de um audiograma. Se, no futuro, ao serem escutados, melhorarem a vida de alguém, terá tudo valido a pena.” Nunca tanto como agora.

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