David Harrington (à esq) e o Kronos Quartet
A cena é fácil de imaginar: aos 14
anos, e com a capacidade de espanto intacta, David Harrington desvia o olhar do
ecrã de televisão e coloca-o no globo terrestre que tem na secretária. Girando-o,
não procura Vietname, Cuba ou Panamá. Ignora igualmente o Brasil do Golpe
Militar e a África do Sul que condenava Mandela a prisão perpétua. Tenta, antes,
localizar Viena de Áustria. “Foi como um daqueles momentos em que subitamente
se acende uma lâmpada na nossa cabeça”, diz-nos, 50 anos depois, ao telefone de
um quarto de hotel em Nova Iorque. “Era dali”, prossegue, “daquele minúsculo
ponto no mapa, que vinham as obras que eu conhecia e tocava: as de Haydn,
Mozart, Beethoven e Schubert. Por isso, era como se o meu mundo estivesse
circunscrito às suas fronteiras. Mas, perguntava-me: e nas outras cidades, nos
outros países, como seria a música?” Não será exagero sugerir que tem
atravessado a vida em busca de respostas.
Harrington fez 65 anos em setembro.
Desses, passou 40 com o Kronos Quartet, cartografando terrenos de exclusão
geográfica, cultural e artística. A discografia do grupo é uma concatenação de
vozes extraordinariamente dispersas, memórias de exílio, encontros com o
exótico. E dá mostras de ser compreendida por uma vasta audiência que crê que a
arte moderna, mais ainda que multiforme, deve ser incoerente. “Para mim”,
clarifica, “seja ela de Tuva, da República Centro-Africana ou de Nova Orleães, a
música retém o principal da reação humana ao universo. Nessa perspetiva, é um
inventário das suas atitudes. Foi obviamente individualizada pelas mais
diversas circunstâncias, técnicas e práticas, mas remete para um impulso comum:
que o mundo se mantenha um local reconhecível não obstante tudo o que de imenso,
terrível e contraditoriamente belo sucede nas nossas vidas. E, nisso, o que há
de assombroso e fascinante são as infinitas possibilidades de lhe dar expressão.”
É um truísmo afirmar que o Kronos
Quartet não possui dois discos iguais. Assemelha-se tematicamente o par de
gravações com que primeiro deu nas vistas: temas associados a Thelonious Monk e
Bill Evans. Mas, desde então, sobressai uma espécie de interminável catalogação
da crise. “Foi em 1973 que ouvi ‘Black Angels’, de George Crumb”, relembra, “peça
com origem nos cataclísmicos eventos da Guerra do Vietname, naqueles
monstruosos, horríveis e trágicos atos ditados pelo envolvimento
norte-americano. E, pasme-se, disso tudo sai aquela obra de arte. Senti que se
tratava de um contrapeso: o princípio de qualquer coisa que poderia vir a modificar
o rumo dos acontecimentos.” Pausa, como que justificando o que vai de seguida dizer:
“Acho que a música tem consequências verdadeiramente pessoais, sabe? Ninguém
percebe bem como é que o seu processo se desenrola mas sabemos quando funciona.
E ao ouvir ‘Black Angels’ vi que funcionava. E concluí que tinha de fundar um quarteto
para o interpretar.”
Dir-se-ia identificada uma missão. “Com
o passar dos anos aprofundou-se essa tomada de consciência”, continua: “essa noção
de que a música pode efetivamente conduzir à mudança. Era fervorosamente contra
a Guerra do Vietname mas não sabia bem o que dizer. Descobrir ‘Black Angels’
foi como achar a minha própria voz. E ando a ouvir vozes como essa há 40 anos.”
Entusiasma-se. Fala-nos de uma compositora, Mary Kouyoumdjian, que está a
escrever um quarteto para assinalar o centésimo aniversário do Genocídio
Arménio. E diz que Terence Blanchard lhes vai dedicar uma obra para marcar os
150 anos da Guerra da Secessão. Ou seja, o Kronos também se opõe à violência
que o rodeia. “Temos vontade de gerar a energia necessária à resolução de
problemas”, conclui. “Para mim, a música deve resultar em ação. Ou culminar no
desejo de que as coisas possam ser diferentes daquilo que são. Hoje em dia”,
esclarece, “temos de observar atentamente quem tem o dinheiro, quem detém o
poder, quem fabrica armamento, isto é, todos aqueles que lucram à custa da
miséria alheia. Temos de disputar as ações do meu país, dos seus governantes,
dessa gente que esburaca a planeta à procura de petróleo, e que se permite ter
opiniões sistemáticas acerca de tudo e todos. Para o Kronos é importante que se
debatam estes assuntos. Que se conteste o uso da força.”
Mas, muitas vezes, mais do que uma
relação criteriosa de conflitos entre homens, o Kronos chama a atenção para
figuras cuja fonte de poder e de angústia se confunde com o seu próprio
isolamento. É o caso de Carlos Paredes, por exemplo, de que planeiam tocar na
terça à noite a adaptação que Osvaldo Golijov fez de “Verdes Anos”. “Paredes é
paradigmático”, explica Harrington. “Ao entrar em contacto com a sua obra
pensei: mas onde é que andei toda a minha vida? Ali estava uma voz única, singular,
solitária, cheia de paixão e fúria. Senti-me como se não tivesse absolutamente
nenhuma outra opção que não a de a levar a mais gente. No fundo, é isso que pretendo:
música que me magnetize, que me cative o pensamento, que me force a incluí-la
na minha coleção.” Toca inadvertidamente num ponto sensível, pouco consensual:
a ideia de que o Kronos baralha amiudadamente partilha com proselitismo, exceção
com expropriação. “Mas eu vejo-me como um colecionador de experiência
musicais”, declara. “E mostrá-las é um dos meus maiores prazeres. Quando me
deparo com alguma coisa desconhecida que me atrai ou quando me cruzo com talentos
admiráveis com que o Kronos nunca trabalhou, que escolha é que tenho? Não o posso
simplesmente ignorar.”
Nas suas decisões, o Kronos difere
de quase todos os outros quartetos. É narcísico e, por isso, invulgarmente
adstrito a críticas. Um álbum como “Caravan” (1990), que inclui “Verdes Anos”,
reúne ainda criações sérvias, mexicanas, indianas, húngaras, romenas,
argentinas ou libanesas, e há algo de arbitrário em todo esse extático ecletismo.
Em “Floodplain” (2009) viaja-se até ao Egipto, Etiópia, Cazaquistão, Turquia,
Azerbaijão, Golfo Pérsico ou Palestina, e há certamente quem dispense a visita
guiada. Uma e outra vez o quarteto é simultaneamente ponto de partida e
destino, um modo de personificar eroticamente a complexidade do mundo,
repudiando o cânone. Mas não deixa de ser uma forma limitada de representação,
como é na igreja um vigário, e de pôr agentes espalhados pelos quatro cantos do
globo a comunicar através de si da mesma maneira que nos filmes antigos de
Hollywood até os habitantes dos lugares mais longínquos falavam inglês. “Mas há
instância musical mais apta a traduzir toda essa complexidade do que a do
quarteto de cordas?”, interroga. “Temos a obrigação de explorar todas as
situações potencialmente interessantes. E em cada nova aventura nossa tem de se
sentir o peso da experiência e conjuntamente a frescura que há em saber correr
riscos. Nem sempre sabemos aonde iremos parar mas queremos que seja ao melhor
sítio possível.”
“Sabe”, moraliza, “acredito que a
maior parte dos compositores que estão a escrever para o Kronos está disponível
para dar o passo seguinte, a refletir sobre esta imensa paleta de cores que o
quarteto lhe põe à disposição e ver até onde realmente consegue chegar. É isso
que me preocupa. Por isso é que acordo tão cedo! [Começámos a conversa às 6 da
manhã e Harrington estava a pé desde as 4] Até agora o Kronos já teve 870
estreias. Qual vai ser a octingentésima septuagésima primeira? Mas o objetivo é
o mesmo: transportar o nosso público para o cerne das grandes questões que
definem a existência.”
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